Cidades alagadas: o papel da conservação diante dos múltiplos interesses pelo uso da terra

Muitos de nós só reparamos que os políticos trabalham ou deixam de trabalhar quando as cidades enfrentam o caos diante de uma forte chuva. Nestes momentos os problemas podem parecer somente uma questão de engenharia, porém o entendimento da dinâmica das águas urbanas passa por muitas escalas de decisões pontuais, até mesmo individuais, e questões meteorológicas globais e locais. O que a princípio pode parecer apenas uma questão de construção de espaços para a água ir de um ponto a outro, além de fiscalização sobre áreas de ocupação, na realidade desconsidera o fato de que os ecossistemas não são unidades isoladas e que estão em constantes transformações (naturais ou causadas pelo ser humano). Diante disso, é importante sempre lembrarmos que uma gestão das águas urbanas que não considere a constante transformação da natureza, está fadada ao fracasso e, consequentemente, a sucessivas perdas ambientais, econômicas e sociais.


A questão da dinâmica dos sistemas tem sido recentemente incluída na elaboração de projetos de drenagem por meio da modelagem matemática. Esses modelos consideram um número cada vez maior de variáveis e têm se tornado cada vez mais aprimorados ao considerar as diversas modificações que ocorrem na bacia hidrográfica, em pequena ou grande escala. Destacando, por exemplo: a expansão e ocupação de novas áreas da cidade e sua consequente impermeabilização; a diminuição da cobertura vegetal; a retificação e canalização dos cursos d´água; o carreamento de sedimentos, causando assoreamento dos principais canais; a mudança de uso do solo na bacia hidrográfica; a influência das marés nos eventos de cheias urbanas, principalmente para as cidades costeiras, além das recentes compreensões das consequências dos processos decorrentes das mudanças climáticas globais.


A redução de florestas atua como um dos principais causadores de alterações na capacidade de resposta dos modelos planejados pela nossa engenharia. Isso porque, estudos científicos recentes definem as florestas como as responsáveis pelas chuvas e, principalmente, pelo armazenamento de água de chuva e sua lenta liberação nos rios e nas cidades. Massas de ar que passam por grandes áreas de florestas produzem, pelo menos o dobro de chuvas, quando comparado com massas de ar que transitam por áreas com pouca ou nenhuma cobertura florestal. No caso das massas de ar úmido, vindas do mar, o encontro com as escarpas florestadas de serras é fundamental para a transformação destas frentes úmidas em chuvas, abastecendo rios e águas subterrâneas e, consequentemente, mantendo condições úmidas na região. A floresta também fornece vapor de água e a umidade que forma as chuvas e mantém o equilíbrio térmico, fato facilmente perceptível através da temperatura agradável. Por fim, a vegetação reduz a força das águas das chuvas (interceptação) e o escoamento superficial (ao promover a infiltração), diminuindo a erosão das encostas e o assoreamento dos rios. Assim ela se mostra como fundamental para a alimentação dos reservatórios de água subterrânea (lençol freático) a liberação gradual da água nos corpos hídricos e, portanto, a manutenção de nascentes e rios.


Ao assumir que a quantidade de água que chega as cidades depende da interação dos complexos fenômenos meteorológicos e da preservação das matas, as medidas adotadas nas cidades atacam apenas os sintomas do desmatamento. Para esses sintomas várias inovações têm caminhado no sentido de produzir uma cidade mais amigável com o meio ambiente, incluindo áreas livres de construção de imóveis, que cumpririam a importante função social de servir como ambientes para contato com a natureza, captação de aguas, abrigo da biodiversidade, controle do clima, enfim, controle de enchentes. Centros urbanos do mundo todo têm avançado em criar espaços verdes, até mesmo áreas de produção de alimento (hortas urbanas), numa engenharia contrária aos antigos (porém em alguns lugares ainda atuais) movimentos de esconder rios e córregos em galerias e canais. Hoje, áreas verdes municipais garantem tanta valorização imobiliária quanto a presença de estradas e vias asfaltadas, o que demonstra uma ligeira mudança de consciência.


Cabe ressaltar que já temos amparo legal para avançar no sentido de garantir a compreensão de efeitos sinergéticos de diferentes empreendimentos na área urbana. Isso passa essencialmente pela participação popular e transparência da gestão pública, garantindo que os diferentes olhares de uma sociedade possam avaliar suas transformações físicas e, portanto, garantindo o exercício do direito às cidades sustentáveis. Esse instrumento legal se chama Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), previsto pelo Estatuto da Cidades (Lei no. 10.257/2001), em complementação com a atuação do zoneamento. Em muitos municípios a criação de Comissões Permanentes de Análise de Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança têm garantido que empreendedores e população se beneficiem, ao evitar que os primeiros fiquem refém das múltiplas licenças de secretarias distintas com diferentes burocracias, exigências e mesmo vícios, e os segundos por compreender e poder participar de decisões fundamentais a manutenção da qualidade de vida.

Para compreender como as cidades estão se reinventando, vejam também os links:

https://super.abril.com.br/sociedade/sao-paulo-tem-quilometros-de-rios-soterrados-por-asfalto/

Rodrigo Lemes

Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia (1999), mestrado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (2002) e doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). É professor do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade (NUPEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 2009. Atua na área de Desenvolvimento Sócioambiental e Ecologia Evolutiva, com experiência em gestão de projetos de caráter interdisciplinar. É representante do NUPEM no Conselho Consultivo do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (CONPARNA).

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