“Você que é psicólogo sabe!” “Como é que a Psicologia explica isso aí?” “Fulano precisa fazer terapia né?”

Todos vocês já devem ter passado por uma situação cotidianas daquelas em que você prefere se calar a dizer aquele textão para problematizar e explicar que algo não é tão simples quanto parece. Temas como uma longa história e muitas perspectivas acabam sendo reduzidas a frases e opiniões ligeiras. Sempre tem um chá de alguma coisa que é mais eficiente e fácil para resolver algum problema que talvez sequer conste em alguma publicação científica.

Bem… senta porque hoje vai ter textão. Vou me dar a liberdade e, principalmente, a licença poética para problematizar e explicar alguns pontos sobre algo que me é muito caro, a Psicologia… ou melhor, as Psicologias.

Sim! Não há uma só Psicologia. Há várias Psicologias. Portanto, quando alguém me fala “a Psicologia explica isso aí, né?”, a depender do contexto e de quem está conversando comigo, silencio-me com um sorriso pacificador no rosto. E que fique claro que isso não é um deboche ou menosprezo, mas sim um reconhecimento do quanto as ciências psicológicas (assim como tantas outras) ainda não conseguem fazer seus conhecimentos acessíveis a todos os interessados… e sobre como algumas conversas breves podem não ser o bastante para a duração desse tipo de reflexão.

Uma pausa… antes de continuar nessa aventura que o presente texto representa para mim, deixo aqui expressa minha enorme gratidão por meu professor de história da psicologia, Professor Helmuth Ricardo Krüger. O Professor Helmuth nos deixou no início deste mês, no dia de seu aniversário, no dia de sua última palestra e na semana de lançamento de seu último livro. Eu tive a honra de conviver e aprender com um dos fundadores da Psicologia no Brasil. Busco sempre tentar fazer jus a todo trabalho que o professor investiu em mim.

Com o Professor Helmuth, aprendi que a Psicologia pode ter sua história dividida em dois momentos. A história das ideias psicológicas e a história da psicologia moderna, ou seja, da psicologia (reconhecida) como ciência. Na primeira parte, são considerados todo um conjunto de ideias e saberes que contribuíram para a construção de uma ciência voltada a compreender a mente humana. É bem verdade, que em seu princípio, o interesse ainda não era sobre a mente, mas sobre a alma humana (por isso a menção à Psyché – em grego, alma, espírito). Entenda-se que alma, naquele contexto, refere-se principalmente àquilo que estendia-se a além do material, do concreto, do observável.  Portanto, uma história das psicologias, via de regra, precisa passar pelo estudo das contribuições do Sócrates, Platão e Aristóteles (entre outros) e seus investimentos para entender como pensamos, como podemos ser algo mais que objetos móveis, como pensamos nossa existência e o que fazemos com ela na Pólis (na cidade, ou melhor, na vida em sociedade). E o que é a alma? O que é o espírito? Sim, aqui chegamos à definição mais comum de Psicologia como estudo da alma (psyché – alma + logos – estudo, razão ou compreensão).

Nesse ponto do texto você já deve estar pensando que, talvez, a psicologia seja filha da filosofia. Sim, também é! Mas o historiador e filósofo Michel Foucault, em seus estudos sobre as arquelogias do saber (em FOUCAULT, 2002), vai trazer o entendimento da Psicologia como uma área do saber que surge do encontro da Filosofia com a Biologia, estudo das normas e das funções, do estudo do encontro da alma/mente com o orgânico/bio. Descartes vai trazer também uma grande contribuição para esse entendimento quando se propõe a pensar a interação entre mente e corpo. A mente tem vontade, percebe e pensa. O “penso, logo existo” (frase mais famosa deste pensador), digamos, vira o jogo e coloca a existência como um atributo da mente e não do corpo. Para aqui brincar e simplificar, o corpo vive, a mente existe.

E você? Está vivendo ou existindo?

A partir do surgimento desse modo de pensar, o corpo, a vida, cientificamente estudada, perde a sua condição histórica de sagrado e pode ser estudado em suas partes (análise[1] ). A alma dá lugar a ideia de mente e, também dessacralizada, como fez Descartes em seu investimento subjetivo, é estudada como algo que interage e transcende ao corpo. Corpo (cérebro) e mente, vida e existência, biologia e filosofia, assim, como uma poesia, começa a Psicologia Moderna.

A Psicologia Moderna vai ser reconhecida como ciência, ou começar sua etapa mais científica, justamente quando começa a buscar entender a mente humana a partir do estudo daquilo que é observável, replicável e mensurável. Ou seja, quando ela consegue, se enquadra no rol das ciências positivistas. Valendo-se dos avanços das ciências fisiológicas na Alemanha de 1800, cientistas como Fechner e Wundt (entre muitos outros) começam as estudar a mente humana a partir de experimentos (concretos e observáveis). Assim, poderia observar o quanto humanos poderiam confundir ou perceber as diferenças entre tipos de estímulos de vários tipos. Ou seja, como a mente pode diferenciar a intensidade ou proximidade de duas agulhadas ou espetadas em suas costas, ou o tempo de reação a um determinado estímulo. Com essa forte influência de estudos de fisiologia estava inaugurada a Psicologia Experimental. É justamente na data da fundação do Laboratório de Psicologia Experimental da Universidade Leipzig (1875), por Wilhelm Wundt, que é considerado o marco inicial da Psicologia Moderna.

A partir desse momento histórico, na articulação entre as ideias e os experimentos, entre mente e corpo, muitos caminhos para a psicologia começam a ser traçados. Um desses movimentos pode ser entendido em termos de uma adjetivação e substantivação da psicologia. Mas o que quer dizer isso? A psicologia vai ser tomada como coisa (substantivo) a ser estudada, ou qualidade (adjetivo) de algo que se estuda. Isso refere-se a uma proliferação de muitas vertentes, linhas ou sub-áreas da psicologia que vão carregar algumas características (adjetivos) de seus objetos, métodos e teorias utilizadas nos estudos. Ou seja, a Psicologia vai ser caraterizada pelo “o que” estuda, como estuda e com base em quais ideias estuda. Assim, ao longo dos anos, vão aparecendo as psicologias dos “o quês” se estuda, por exemplo: psicologia do desenvolvimento, psicologia da aprendizagem, psicologia do esporte, psicologia jurídica, psicologia da educação, psicologia do trabalho, psicologia da saúde. Também começam a aparecer as psicologias do “como” se estuda: psicologia experimental, psicologia analítica, psicologia interacionista, psicologia diferencial… além das junções de palavras que evidenciam encontros entre a psicologia e outras ciências, psicofisologia, psicobiologia, psicossociologia. Também surgem as psicologias dos contextos de estudos e aplicações: psicologia escolar, psicologia institucional, psicologia ambiental. As influências das teorias psicológicas podem ser observadas na clínica, no mundo do trabalho e nos processos de ensino-aprendizagem, e as principais correntes de contribuição são provenientes da psicanálise, psicologia comportamental, psicologia social, psicologia cognitiva, psicologia histórico-cultural, psicologia interacionista… entre muitas outras.

Todas essas Psicologias podem guardar modos diferentes de estudar e explicar fenômenos mentais e corporais. Algumas destas se opõem nas suas maneiras de explicar, outras se podem até trabalhar juntas. Entretanto, há que se frisar que não existe uma só psicologia. A psicologia explica? Sim pode explicar! Há uma só resposta? Raramente. Mas por que isso? Porque a psicologia é uma ciência, está sempre em evolução, sempre evoluindo nos seus modos de compreender e explicar as nossas mentes de modos de ver o mundo. Além disso, há várias linhas e modos científicos de conceber a Psicologia. Portanto, há várias respostas, mas pode ser que nenhuma seja o bastante.

As teorias e ideias psicológicas também são em grande medida situacionais. Além destas diferenças entre as psicologias, há que se ponderar sobre o seu caráter histórico e o quanto suas teorias podem ou não ser mobilizadas para o entendimento de questões atuais. A psicanálise Freudiana, por exemplo, foi pensada e desenvolvida em uma sociedade austríaca por volta do ano 1900. Assim, o quanto os conceitos de complexo de édipo, inconsciente e transferência podem ser seguros para estudar a mente de pessoas de tribos indígenas de áreas remotas da Amazônia? Por exemplo, a estrutura familiar em algumas tribos não tem tão clara a figura paterna, por isso a ideia de complexo de édipo pode não ter uma aplicação tão segura.

As psicologias são desenvolvidas por homens. Sim! Eu estou atento a um sexismo presente na frase anterior. Poucas teorias da psicologia historicamente estudadas, ou com maior circulação, ou se maior “reconhecimento” foram desenvolvidas por mulheres e pretos. Isso traz um enorme viés no conhecimento científico produzido pela psicologia. Freud, Aaron Becker, Skinner, Watson, Frankl, Jung, Vygotsky… uma imensa lista de homens brancos do norte do globo. Há mulheres! Melanie Klein, Anna Freud, Judith Becker, Maria Montessori são conhecidas, mas bem mais provavelmente você ouvir falar os nomes dos homens que das mulheres listadas[2]. Quais nomes de pensadores de psicologia que sejam latino americanos ou africanos você já ouviu falar? Essa tarefa é mais árdua se a busca for por pensadoras do sul do mundo. Vale ressaltar que esse viés não invalida o conhecimento psicológico desenvolvido pelos homens do norte, alguns mesmos criticam esses vieses aqui apontados e tentam ir além.  Tais vieses apenas estabelecem limites ao uso de suas ideias para o entendimento de questões estrangeiras aos seus territórios. Há uma psicologia da pobreza? Há uma psicologia da mulher? Talvez a tal tentativa de controle, tão injustamente criticada nas ideias behavioristas, esteja na verdade nos interesses e objetos de estudo da psicologia.

Algumas ideias psicológicas acabam sendo extrapoladas em seus usos. Há também o caso de teorias que são mobilizadas para além daquilo que elas se propuseram explicar. É verdade que alguns usos foram danosos para o entendimento dessas ideias, como no caso de behaviorismo. Skinner defendeu a ideia da experiência como elemento central da aprendizagem humana. Ou seja, não seria uma questão de dom, de talento, de predisposição escolhida por divindades, mas um resultado direto da qualidade, intensidade e frequência das experiências as quais fomos submetidos e, sobretudo, do resultado dessas experiências. A depender das consequências de meus comportamentos, eu posso o repetir ou não. Se a consequência fosse boa, fosse uma gratificação, eu tenderia a repetir. Caso consequência trata-se de uma punição, eu tenderia a evitar esse comportamento. Contudo, algumas instituições, como escolas e empresas, fizeram usos perversos dessas ideias com o propósito de tentar controlar o comportamento humano. Como consequência disso, injustamente, as ideias de Skinner passaram a ser acusadas de estarem a serviço do “controle das mentes”.

A este ponto, você leitor deve estar se perguntando sobre a quantidade de teorias psicológicas. Posso lhes assegurar que não mencionei um décimo delas (provavelmente bem menos do que isso). Um psicólogo precisa estudar todas estas teorias para se tornar um psicólogo? Pelo menos a maior parte.

A partir do momento em que a psicologia passa a ser reconhecida como ciência, a formação e prática de psicólogos precisa estar orientada pelo rigor científico e por rígidas condutas éticas. Mas com tantas teorias, qual é a certa? Qual é a melhor? Cada uma das teorias foi desenvolvida com objetivos e como resposta a um conjunto de perguntas, além de sustentadas por um conjunto de experimentos e observações. Todas as teorias trazem contribuições históricas e podem ser úteis para entender parcelas da realidade, nunca a totalidade dela. De fato, nenhuma teoria científica nasce com essa pretensão. Contudo, se você quiser entender algum ponto relacionado a aspectos psicológicos envolvido em interações sociais humanas, a psicologia social ou a psicologia histórico-cultural tendem a ser mais úteis que a psicologia animal (sim, existe uma psicologia animal hahahaha).

A psicologia explica? Sim, pode explicar, mas essa explicação nunca é completa.

Então para que serve a psicologia? A psicologia, como a maioria das ciências, está mais a serviço de produzir perguntas e buscar as responder. Lembre-se que as ideias psicológicas são datadas, situadas, tem vieses, podem ser mal aplicadas, mal entendidas e, principalmente, dialogam entre si. O seu poder explicativo é sempre limitado, situado e depende bastante de uma observação sistemática de uma situação, contexto e processo.

Ah! Então é por isso que na terapia os psicólogos nunca respondem nada, apenas perguntam? Sim e não! Isso tem a ver com o rigor científico da profissão. Se eu entendo que não há apenas uma verdade, não há apenas uma teoria, não há apenas uma forma correta de observar o mundo, o poder das minhas respostas fica um tanto restrito. O mundo não é um fato consumado, um sistema fechado de normas explícitas e seguidas à risca. Portanto, realidade é dinâmica, está em constante transformação e nós, como parte dela, também estamos. Por essa razão que eu afirmo que só podemos ser psicólogos (e professores) se acreditarmos nessa mudança constante (ao menos na possibilidade dessa mudança). Do contrário, as pessoas não mudariam, não se desenvolveriam, permaneceriam eternamente em suas misérias mentais e um psicólogo em nada poderia ajudar. Na minha opinião, acreditar na possibilidade de transformação de qualquer ser humano deveria ser premissa de qualquer trabalho em psicologia e em educação.

As perguntas dos psicólogos também atendem ao propósito de favorecer o surgimento de decisões, modificações que nasçam da pessoa que busca assistência. Vamos ao psicólogo clínico para desenvolver um melhor modo próprio de pensar, e não para aprender a pensar como o psicólogo (e assim o tomar como modelo a ser seguido). O psicólogo não é e não pode ser visto como um oráculo que tem respostas para todos os desafios da existência e mistérios da mente humana. O psicólogo está sempre dedicado a contribuir para o desenvolvimento das pessoas, mas que esse caminho seja escolhido e caminho por quem quer evoluir, se transformar em algo melhor para si. Se a experiência nos ensina, eu preciso ter a liberdade de escolher que experiências, que caminhos seguir e ser responsável pelos resultados de tais escolhas. Assim, as consequências dessas decisões podem me ajudar perceber qual é o melhor caminho a seguir.

Dessa última reflexão aproveito para deixar claro que nem todos precisam de terapia, nem a todo momento. “Viver é melhor que sonhar”, diria Belchior (e belamente cantaria Elis). Viver, experimentar é a principal parte. A psicologia clínica (a terapia) pode lhe ajudar a refletir, repensar essa experiência e mudar o modo como você responde a situações de sua vida. Entretanto, de nada adiantaria fazer terapia e pouco viver as experiências. Em alguns momentos da vida pode ser difícil refletir sobre o nosso caminho.

Então, pode ser que nem todos precisem de terapia. As psicologias não são pílulas de felicidade ou o google que para tudo encontra uma reposta. Se alguma psicologia assim se apresentar, fuja! A psicoterapia é uma atividade linda, um encontro entre duas mentes/almas em que uma delas busca entender seus lugares no mundo, os caminhos que percorreu e percorre, o quanto esse caminho transforma quem caminha e o quanto o caminho é transformado por quem caminha. A terapia é mais efetiva para os dispostos a caminhar e a pensar a si e seus caminhos (e não tanto para aqueles que passam a resmungar e responsabilizar os caminhos por sua falta de sorte).

Não menosprezo o poder da psicologia, na verdade valorizo o poder do querer se conhecer e conhecer o mundo. Todos deveriam poder fazer terapia se assim quisessem. Infelizmente as psicologias tendem ainda a ficar restritas a algumas poucas camadas sociais. Sim! Infelizmente a psicologia ainda é um luxo e para poucos.

Por sorte as psicologias não são os únicos meios de conhecer, reconhecer e transformar a si. As artes, filosofia, ciências podem, de modo diferente, ajudar nessa tarefa. Quantas músicas e poesias já não nos ajudaram a entender um pouco mais sobre nós e nosso caminho?

A psicologia (como conjunto de psicologias) não é chave mestra da mente humana, não é um aplicativo que se instala no celular, não é site de buscas, nem tem respostas prontas. Ela é o meio de conhecer a si e ao mundo. É um meio de perguntar a si e ao mundo. 

A psicologia não explica quem é você, o que o mundo fez contigo ou o que você fez com o mundo. A psicologia pode ser uma aliada nessa tarefa de conhecer a si mesmo, conhecer o que o mundo fez contigo, o que você fez com o mundo e, principalmente, a partir destes entendimentos, ajudar a você encontrar novas formas de fazer algo com o que o mundo fez contigo.

Então nem Freud explica? Não!

E você? O que você explica sobre você?


[1] Em Japiassú e Marcondes (1996) – análise (gr. analysis, de analyein: desligar, decompor um todo em suas partes) 1. Divisão ou decomposição de um todo ou de um objeto em suas partes, seja materialmente (análise química de um corpo), seja mentalmente (análise de conceitos). Opõe-se à *síntese, ato de composição que consiste em unir em um todo diversos elementos dados separadamente. Alguém que possui um espírito de síntese, por oposição a quem possui um espírito analítico, é aquele que é apto para considerar as coisas em seu conjunto. 2. Procedimento pelo qual fornecemos a explicação sensata de um conjunto complexo. Ex.: a análise de um romance, de um fato histórico. 3. Método de conhecimento pelo qual um todo é dividido em seus elementos constitutivos.

[2] Você pode ler mais sobre essa mesma condição desigual em um contexto mais amplo da ciência no texto: Ciência é substantivo feminino – https://mandalaciencia.com.br/ciencia-e-substantivo-feminino/


REFERÊNCIAS

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de. Janeiro: Jorge Zahar, 1996


Américo Pastor

Professor Adjunto do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou estágio pós-doutoral em Ensino de Saúde (EEAAC-UFF) e Cognição Social (UCP). Possui doutorado e mestrado em Educação em Ciências e Saúde pelo Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES-UFRJ), bacharelado em Psicologia pela Universidade Católica de Petrópolis e bacharelado em Desenho Industrial (Design - Programação Visual) (UFRJ). Desenvolve pesquisas sobre aprendizagens mediadas por tecnologias, linguagens e audiovisuais nos espaços formais e não formais de educação em ciências e saúde.

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