Ciência é substantivo feminino

A nossa sociedade hoje vive o resultado de muitos fenômenos e descobertas realizadas sob a luz da ciência. Praticamente tudo o que utilizamos e fazemos, de roupas à relógios digitais, de hidratantes corporais à óculos de grau, são consequências muito importantes de cada passo que demos e tudo o que contruímos ao longo da história do planeta e da evolução da nossa espécie. Assim, sabendo do quão necessário a ciência se faz para para todes, eu lhe pergunto: Quando te questionam sobre como são cientistas, qual a figura que lhe vem a cabeça? Qual é a primeira imagem que você associa a quem realiza alguma pesquisa científica? Um homem branco, velho, de óculos, um cabelo maluco, jaleco branco e língua para fora (risos)??!

Se essa for a sua percepção de quem faz ou pode fazer ciência, meu camarade, sinto prazer em lhe mostrar tamanho engano. Muitas das invenções e descobertas científicas que existem no nosso presente foram realizadas e mobilizadas por mulheres. Sim, mulheres! A dupla hélice do nosso DNA, a tão celebrada cerveja, o tão aclamado e atualmente indispensável wi-fi, os painéis de energia solar, a programação de computador, o colete à prova de balas, o bote salva-vidas, entre muitos outros.

A cerveja, por exemplo, surgiu como um pequeno acidente: as mulheres, há 11.000 anos atrás, eram responsáveis pelos grãos colhidos, que eram armazenados dentro de jarros onde, posteriormente, seriam usados para fazer pão. Esses jarros ficavam expostos a efeitos climáticos, ou seja, tomavam sol, chuva e, por conta disso, tais grãos eram fermentados e formavam um líquido que conhecemos hoje como cerveja. Em 1.800 a.C., alguns milhares de anos depois, a primeira receita de cerveja foi descrita por uma mulher, feita em homenagem à deusa conhecida pelos sumérios como Ninkasi. Após dez anos, o lúpulo, um dos principais ingredientes na produção da cerveja, teve suas características e propriedades descritas por uma mulher chamada Hildegard von Bigen.

Já o wi-fi é mais atual e teve sua base criada na época da Segunda Guerra Mundial, pela atriz de Hollywood e inventora Hedy Lamarr. A inventora criou, junto com o compositor e também inventor George Antheil, um sistema de comunicações para as Forças Armadas dos EUA, servindo como base para a invenção do wi-fi e da atual telefonia nos aparelhos celulares. Se tratava de um aparelho de interferência em rádio para despistar radares nazistas. Hedy Lamarr descobriu que, se o emissor e o receptor mudassem de forma constante a frequência de rádio, somente os mesmos poderiam se comunicar sem intercepção inimiga.

Há também a dupla hélice do DNA, que foi descoberta baseada em estudos e experimentos de difração de Raio – x, realizados por Rosalind Franklin. Ela era uma cientista biofísica muito inteligente, feminista e dedicada, porém no laboratório em que estudava em Cambridge não havia incentivos, muito pelo contrário, era difícil para uma mulher, naquela época (e muitas vezes hoje em dia também) trabalhar nos laboratórios da universidade. Então ela foi à Paris, para o laboratório Central de Estudos Químicos do Estado, onde poderia fazer os seus estudos com mais recursos e sossego, mesmo que o professor responsável pelo laboratório (Maurice Wilkins), a visse apenas como uma assistente. Tudo começou quando Rosalind apresentava uma de suas palestras numa conferência em Londres, no King’s College, onde James Watson, que trabalhava com o físico Francis Crick, se interessou pelos resultados da Rosalind. Foram até o laboratório dela, onde conseguiram acesso aos resultados de suas pesquisas sem autorização, através de Wilkins. Anos depois, Watson e Crick publicaram em uma das revistas mais renomadas da ciência, a Nature, o artigo sobre a descoberta da estrutura do DNA. O nome de Rosalind, por eles, não foi reconhecido. Assim se deu também a todas as conquistas que vieram depois, como o premio Nobel de Fisiologia e Medicina entregue aos três homens. Ela faleceu em 1958, aos 37 anos, com câncer no ovário.

Essas são três das muitas histórias de invenções e produções de pesquisas mobilizadas por mulheres mas, mesmo que diferentes umas das outras, percebe as linhas-ponto que ligam cada uma delas? Primeira: nós não conhecemos o nome delas e, segunda: nós não falamos que existem mulheres cientistas e de sua importância para o que entendemos hoje, como mundo, como muito que faz parte do que é existir. Rosalind partiu dessa realidade sem ter sido reconhecida em vida, assim como muitas outras. É impossível também não relatar sobre as muitas mulheres cientistas negras que tem menos holofotes ainda sob sua existência, como a matemática Katherine Johnson, que fez muito mais do que mandar o homem ao espaço, em 1962; ou Dorothy Vaughan, a primeira supervisora negra da história da NASA; ou Mary Jackson, que se tornou a primeira engenheira negra da NASA; ou a biomédica Jaqueline Goes de Jesus, que coordenou a equipe que sequenciou o genoma da Covid-19 no Brasil em tempo recorde. Jaqueline Goes de Jesus, em seus poucos minutos de visibilidade dada pela mídia, declarou em entrevista ser uma entusiasta do acesso democrático ao ensino superior, para que não só mulheres, mas pessoas pretas também sejam presentes nesse espaço.

São reflexões importantes para que aquela ideia de cientista homem e branco, colocada no início dessa prosa, não reverbere na consciencia coletiva e, principalmente na de menines, meninos e meninas, quando pensamos sobre o que é ser cientista. Afinal a cientista inteligente que vos escreve, é uma mulher preta, vinda das zonas periféricas de São Paulo e que buscou muitas inspirações em mulheres cientistas, principalmente cientistas e intelectuais negres, para incentivo de vida e para as novas visões e possibilidades de mundo. Como apontado no vídeo “Mulheres Negras Fazendo Ciência”, disponível no nosso site, de 777 professores cientistas dentro do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da UFRJ, apenas 4,86% são professoras cientistas negras. No Centro de Tecnologia (CT), de 476 professores, apenas 0,22% são professoras negras. No Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN), de 349 professores, 0,58% são professoras negras. Tais dados com números quase inexistentes nunca foi por acaso. Hoje em dia, quando me questionam sobre o que é ser e qual a figura de um cientista, eu penso em mim. E para você agora, o que é ser cientista?

Stella Almeida

Caminho de vida que segue com arte escrita, desenhada e sentida. Arte e educação movimentam o seu existir. Stella é graduanda em Ciências Biológicas no NUPEM - UFRJ, Diretora de arte, cultura e criação da LASCOM Cebes Macaé, e bolsista de Iniciação Científica do Projeto 'Ativismo alimentar, sustentabilidade e defesa da biodiversidade: o caso do Movimento Slow Food Brasil'. É também integrante dos projetos de extensão 'Afric(a)ção'; 'Vou para o Sul saltar o cercado: narrativas femininas para o incentivo de meninas na Ciência'; e 'Produção e Recepção de Mídias na Formação de Professores' e da 'Comissão de Direitos Humanos e Combate à Violência' (CDHCV), na UFRJ Campus Macaé. Sua atual área de estudo e Projeto de Conclusão de Curso se encontram na educação e nas relações étnico raciais e de gênero, contextualizadas com as ciências ambientais.

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