Nós, os iludidos

Todos queremos certezas e soluções que nos confortem. E essas certezas, para cumprir seu papel, são muitas vezes abraçadas com mais fervor do que comprovação.

Lendas e mitos indígenas foram criados como tentativas de explicação do universo, da natureza e de seus fenômenos, inexplicáveis até então. Deuses do Olimpo se misturam aos mortais em narrativas que explicam e romantizam a história do mundo. O que era incompreensível passa, assim, a serenar as dúvidas desses povos.

Contudo, não são só essas as certezas que buscamos. Tudo que se traduz em reconhecimento emerge naturalmente das nossas percepções domesticadas. Buscamos formas humanas em nuvens, na tentativa de familiarizar o que é disforme. Gostamos de palavras e sons conhecidos, que nos levam à segurança do que já experimentamos. Procuramos manter um equilíbrio coerente entre aquilo que acreditamos e em como o expressamos.

No que acreditar? Como expressar e enfrentar acontecimentos de tanta magnitude, tão desestruturantes e incompreensíveis quanto a morte? Fabricamos soluções confortantes que tragam alguma esperança, para aguentar o tranco. O paradoxo entre a certeza da nossa mortalidade e a incerteza do seu significado e de suas implicações, faz com que busquemos soluções espirituais para um evento tão corpóreo. Só passando para o etéreo encontramos alento para o que é inevitavelmente mortal.

Estamos vivendo um período de muitas incertezas e privações. Pôr um fim a essas incertezas e privações passou a ser a meta número 1 de boa parte da população mundial. Por consequência da urgência, sem certezas cientificamente comprováveis, fabricamos algumas delas. Existe prevenção para a epidemia de Covid-19 fora máscaras, distanciamento e higiene? Ainda não, a não ser a perspectiva das vacinas. Usar máscara, se manter distante e lavar as mãos a todo instante não são soluções agradáveis, causam mudanças drásticas na rotina, implicam em saudades, solidão, incômodo, sem falar na ansiedade. Perdemos o pouco controle que tínhamos, ou pensávamos que tínhamos, da vida. Mas ela, a vida, continua. Para alguns. Já vimos irem embora pessoas mais distantes, pessoas públicas, pessoas próximas e nós aqui, ainda vivos.

Imagem de Наркологическая Клиника por Pixabay

Com o tempo, se grande parte da ansiedade, do desconforto, da insegurança, continua atrelada ao desconhecido, ao ignorado, damos o nosso jeito cognitivo usual: buscamos novas soluções. Está com soluço? Um papel na testa resolve. Perdeu alguma coisa? Chamando São Longuinho em três, dois… O motivo da pandemia? Uma conspiração chinesa, um castigo à humanidade, o fim dos tempos que se aproxima. E, se por acaso, o soluço acaba, não encontramos o que procurávamos, não há provas de conspiração, castigo ou fim dos tempos? Não interessa. Não há tempo para mais agonias e incertezas. Não há porque esperar respostas incompletas de resultados estatísticos. Já funcionou: o soluço passou. 

A proteção ao desconforto da incerteza traz como consequência atitudes, como dar crédito a superstições e conceitos fabricados, ignorando os fatos. O problema de acreditar em soluções que nos acalmam, falando especificamente de medicina e saúde, são as graves consequências de crenças que não condizem com a prática científica.

No caso dos medicamentos utilizados aleatória e preventivamente contra a Covid, a consequência, para aqueles que não sofreram com seus graves efeitos colaterais, é a falsa sensação de que estamos mais seguros. E, quanto mais o tempo passa, mais seguros nos sentimos de que não pegaremos a doença. É aí que mora o perigo. O maior dano vem da falsa sensação de segurança.

Quando a segurança é formada com base em superstições é que a insegurança maior se instaura. Pudemos ver o resultado dos encontros nas festas de fim de ano. Vemos diariamente pessoas se divertindo, em grandes aglomerações. É claro que, ao lado da falsa segurança do tempo sobrevivido, atrelado a fábulas, há também o fascínio do flerte com a morte. A Ivermectina, a Cloroquina e similares fazem o papel da espada, do martelo, do manto da invisibilidade. São apetrechos romanticamente usados pelos heróis, que enfrentam o mal e vencem no fim. Lembram-se do Olimpo? Só que dessa vez os heróis são mortais. As falsas saídas sustentam a impressão de que não transmitiremos o vírus, que estamos protegidos, que somos ungidos, imortais, beneficiários de Zeus, merecedores de qualquer graça, nós, os escolhidos. E assim, sob o manto da vontade egoísta, aliada às soluções fáceis da ignorância, comprovamos a eficácia do papel na testa.

Precisamos nos lembrar, mais uma vez, que somos responsáveis por nós mesmos, ao menos. E que, no caso da Covid, se estamos assintomáticos e não nos afastamos de outras pessoas, somos responsáveis pela sua saúde e pelas mortes que viermos a causar. Não há como responsabilizar a ira divina se somos nós os sem máscara. Nós, os de cara limpa, cuja simbologia se transforma, ao mostrarmos o rosto para a morte, escondidos na diluição da responsabilidade grupal, apagadas as individualidades. Brincar de prevenção milagrosa e aglomeração não é como o jogo de futebol, em que o timão ganha se usamos sempre a mesma camisa.  No caso de a camisa não garantir a vitória do time, cada vez mais, choraremos as perdas.

Adriana Svacina
Mestre em Psicologia Social

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