Uma reflexão sobre a cultura do cancelamento

Este é um tema que você certamente pensou que nunca veria em um blog de ciência, não é mesmo? Mas saiba que por trás deste assunto tem muito mais de ciência do que você imagina. E digo mais, a cultura do cancelamento nada mais é que um tópico interessantíssimo da ciência: o comportamento humano.

E é neste ponto que eu começo a minha reflexão. Ao longo dos últimos anos, vimos o mundo se transformando com o surgimento da internet, redes sociais e smartphones. O nosso comportamento mudou completamente e inserimos instrumentos nas nossas vidas que, até a década de 90, nunca imaginaríamos ver. Aliás, você se lembra do que você fazia quando não tinha um celular?

A popularização da internet trouxe aspectos muito positivos em relação ao aceso ao conhecimento, mas também carregou aspectos negativos, dentre eles, o surgimento dos “juízes da internet”.

Algumas vezes eu fico me perguntando, quando foi que as pessoas perderam o dom da convivência em sociedade. Sabe aquela regra básica de não dizer tudo que pensa? Pois é, parece que as pessoas simplesmente esqueceram dela.

A última eleição presidencial foi um ótimo exemplo disso. Ouvimos tanta besteira sendo dita, nos deparamos com tanta gente compartilhando fake news, sem se dar ao trabalho de checar se aquela informação era verdadeira e vimos dois fatores ganhando importância: a falta de filtro e a punição pelas coisas faladas.

Este cálculo sobre “o que dizer” sempre existiu, mas parece que antes convivíamos com uma certa impunidade, por mais que as opiniões fosses questionáveis. E neste ponto eu até vejo pontos positivos na cultura do cancelamento, pois muitas pessoas que disseminavam ideias abomináveis tiveram que diminuir um pouco o tom e, ao mesmo tempo, quem continuou defendendo pensamentos ultrapassados, acabou perdendo seguidores e fama, afinal, o “sucesso” hoje em dia é medido pelo tamanho da sua rede social.

A cultura do cancelamento vem ganhando tanta notoriedade, que mês passado vimos uma carta aberta defendendo a livre expressão de ideias sendo assinada por 153 artistas, intelectuais e escritores de vários países. Dentre eles, estavam nomes como J.K. Rowling, Andrew Solomon e a ativista feminista Gloria Steinem.

Esta preocupação demonstrada na carta, só revela algo que já era comentado desde que a popularização da internet começou:

Será que esta “fiscalização” dos discursos está cancelando o nosso direito de falar sobre a nossa opinião ou está nos ajudando a lidar melhor com as injustiças?

Para responder a esta pergunta, podemos lembrar de algo que acontece há muito tempo. As pessoas sempre justificaram falas racista, machista e homofóbicas com a frase: eu falei sem pensar. Na cultura de cancelamento, isso não cola mais. Antes de você conseguir justificar qualquer fala, você já foi cancelado. E isso é muito bom por um lado, pois o “falar sem pensar” já não tem mais espaço entre nós e este seria um ótimo passo para iniciarmos um processo de desconstrução que nos levaria a uma sociedade menos preconceituosa e mais justa.

Por outro lado, será que não estamos perdendo a oportunidade de conhecer as pessoas como elas realmente são? É claro que estamos. Muita gente aprendeu a jogar o jogo para não ser cancelada. Então, se você acha que os seus ídolos influenciadores, cantores e artistas são todos uns anjos, sinto lhe dizer que não são.

A cultura do cancelamento e o empobrecimento do discurso

Diante das mudanças que estão acontecendo, um novo grupo surgiu: o grupo dos que estão ganhando visibilidade exatamente por serem avessos aos padrões de liberdade. Quer um exemplo disso? Sara Winter, que depois de ter falhado no feminismo, foi tentar conseguir atenção no grito. Não precisa ser um grande intelectual para entender o plano dela. Reuniu meia dúzia de pessoas, deu um showzinho em frente ao congresso e falou muita besteira até conseguir ser presa. Uma clara tentativa de se transformar numa heroína nacional injustiçada e presa pelas “pessoas más que corrompem o nosso país”.

E que fique claro que a minha crítica não está ligada a uma opinião política, mas sim à facilidade de manipulação da população, que trouxe tantos discursos de ódio à tona.

Isso nos traz uma outra reflexão. Criou-se um pensamento tão repulsivo em relação à direita conservadora, que, na tentativa de se ser correto, muitas pessoas estão deixando de expressar a sua opinião. E este cálculo do que pode e o que não pode ser dito está cada vez mais criterioso, já que as pessoas tendem a se proteger de situações embaraçosas.

Será que esta atitude mais cuidadosa poderia trazer um empobrecimento dos debates? É provável que sim. A partir do momento que os discurso estão todos alinhados numa tentativa de “lacração” na internet, o debate acaba se tornando mais pobre, visto que as opiniões passam a ser meras cópias do politicamente correto que foi estabelecido pelos que policiam os discursos alheios.

Chegamos a um ponto que nos comentários das redes sociais, existem dois grupos: um grupo que expressa os seus pensamentos e um outro grupo que sobrevive de discordar e encontrar falhas nos discursos dos que tentam falar de forma aberta sobre as suas convicções. Isso, junto à neutralidade que já discutimos, não pode resultar em nada menos que o empobrecimento das discussões.

Enfim, estamos longe de chegar a um consenso sobre como poderemos lidar com o cancelamento que vem acontecendo na internet, mas de uma coisa eu tenho certeza: muitos trabalhos científicos com esta temática vão surgir. Precisamos entender melhor o comportamento humano diante das mudanças relacionadas à tecnologia, para evitarmos problemas maiores.

E você? O você pensa sobre este assunto? Deixe a sua opinião nos comentários.

Fernanda de Carvalho

Fernanda de Carvalho é Engenheira Florestal formada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Mestre em Ambiente, Sociedade e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Continuou seus estudos na Technische Universität München, Alemanha, onde cursou disciplinas do Mestrado em Manejo de Recursos Sustentáveis com ênfase em Silvicultura e Manejo da Vida Selvagem. Dedicou parte da sua carreira a projetos de Educação Ambiental e pesquisas relacionadas à Celulose e Papel. Trabalhou com Restauração Florestal e Formação Ambiental no Meio Ambiente Florestal da Suzano S/A e como Consultora de Comunicação da Ocyan S/A. É conhecida no setor florestal pelos artigos publicados no blog Mata Nativa.

4 comentários em “Uma reflexão sobre a cultura do cancelamento

  • 5 de agosto de 2020 em 09:52
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    Otimo texto! E é sempre bom lembrar que liberdade de expressão e discurso de opinião não pode ser confundido com fake news e difamação!

  • 5 de agosto de 2020 em 10:15
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    O empobrecimento do discurso se dá pelas narrativas que tentam aplacar uma audiência, que pretende-se que seja cada vez maior. Sendo assim, essa tentativa de aprovação de um número grande de seguidores faz o particular, o singular, tentar se tornar plural. Reduzindo assim, algumas rugosidades do discurso.

  • 5 de agosto de 2020 em 13:01
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    Eu adorei o texto, me fez pensar nessas reflexões ao qual citou. Realmente devemos estar atentos aos discurso com cautela e ser prudentes em posicionamentos.

  • 9 de agosto de 2020 em 00:28
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    Arrasou no texto!

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