Uma reflexão sobre a natureza da história ou a história da natureza

Quando Darwin escreveu a origem das espécies, possivelmente não tinha a mínima noção da importância e abrangência de postulados que se desenvolveriam a partir de sua proposta.

Darwin foi exatamente um homem do seu tempo, a figura certa na hora certa no local exato. Analisando o contexto histórico, podemos dizer que o mérito de Darwin foi, sistematicamente, coletar evidências no mundo todo para escrever uma obra prima. Apresentada de forma precisa, por um homem branco, britânico, de linhagem nobre e com assento na Real Sociedade de ciências britânicas, o que garantiu que toda aceitação avançasse de forma bem azeitada.

O conjunto de atributos sociais do nosso personagem e o momento de revolução burguesa e rompimento com a fé (passados os anos de Renascimento e Iluminismo, com decorrente modismo do estado laico) fez com que Darwin lograsse sucesso onde tantos, que já bradavam alguns postulados centrais da teoria de Darwim, fracassaram. São muitos os relatos de outros autores que davam conta da existência do processo evolutivo e outros tantos que sugeriam a seleção natural.

O fato de Darwin ter se demorado na coleta de dados pode demostrar: (1) que ele era um homem zeloso do processo de produção científica e/ou (2) que era inseguro com relação aos pilares conservadores com os quais ele iria bulir, e que estavam ameaçados por outros pesquisadores não tão munidos de evidências e não tão britânicos (como sugere Robert Wright em seu maravilhoso livro “o animal Moral”).

Darwin serviu ao seu tempo ao promover o casamento de diversas noções que ganhavam corpo na época. Noções de universo dinâmico, que era a regra daqueles tempos pós derrubada do poder monárquico, inclusive já se tornando algo démodê (pasmem, até mesmo o avô de Darwin, já tinham sido defensor da ideia da evolução). Incluía a ação de uma mão invisível determinando, em função das habilidades econômicas numa competição pela sobrevivência, o sucesso dos animais na natureza (e por que não das indústrias no mercado). Até questões mais profundas que colocavam a ciência como mecanismo seguro de entendimento da vida, despeitando visões mitológicas que dependiam de entes externos conscientes (Deus), estavam ala nas propostas de Darwin, fazendo tudo funcionar. Passava também, é claro, pelo entendimento de uma estrutura orgânica moldada pela economia da natureza. Também estruturou, de forma errônea (não por culpa de Darwin), uma ideia de ganho progressivo de complexidade (lido pelos incautos como superioridade) que desaguou no Darwinismo Social (como a noção de super homem que alimentou o nazismo). Enfim, tudo que teve sucesso até agora e na época encontrava ou procurava eco nos textos de Darwin, ao ponto de criador e criatura se misturarem.

A essa altura eu espero que minha tese de que Darwin não era nada mais do que um homem do seu tempo já tenha ganhado a credibilidade. Ou seja, Darwin estava totalmente imerso nos paradigmas da sociedade imperialista britânica: não fixista (ou evolucionista), liberal, laica e cartesiana. Assim a história pode nomear o novo paradigma de “Darwiniano”. Como bem explicou o Dobzhansky, as coisas passaram a ter um novo sentido, “nada na biologia fazia sentido a não ser quando visto à luz da evolução darwiniana”. Um novo óculos conceitual vestia agora a intelectualidade. Com este deveríamos olhar os dados, a priori, para que nossas pesquisas fossem aceitas pela comunidade acadêmica (estranho isso para quem diz que a ciência é neutra, mas isso é um problema para outro texto).

Enfim, depois de mais de um século de desenvolvimento do conceito de evolução o óculos conceitual Darwiniano recai sobre a cultura. Claro que isso não foi prontamente aceito pelos críticos de Darwin que estavam alarmados com o estrago provocado pelo Darwinismo Social, mas como todo bom paradigma que domina as visões de mundo, isso reapareceu com outros nomes mas com o mesmo olhar de evolução e adaptação das ideias segundo uma ótica da utilidade no contexto ambiental.

Para quem precisa de ajuda na compreensão do conceito segue excelente diagrama traduzido pelo ANO-ZERO.COM, a partir do link: https://www.facebook.com/pictoline/photos/a.1611821172410355/2117613808497753

Quase um século depois dos escritos de Darwin, Richard Dawkins escreveu um dos mais importantes livros sobre evolução, chamado “O Gene Egoísta” onde propõe que as moléculas básicas, conhecidas como genes, tendiam a persistir mais tempo no sistema quando conferiam vantagens adaptativas e, portanto, mantivessem, alguns comportamentos nem sempre alinhados com o bem-estar do indivíduo. Nesse mesmo livro Dawkins deriva a ideia da existência de formas de entendimento e enfrentamento de situações cotidianas que podem ser aprendidas e ensinadas, chamadas memes. Esses memes permanecem na sociedade devido a sua alta capacidade de garantir a reprodução do indivíduo e, dessa forma, do meme em si. A novidade de Dawkins foi postular que os memes (ou ideias e ideais) eram partículas independentes como os genes que se perpetuavam ou se extinguiam dentro das espécies.

O mais importante aqui é que o meme deve, minimamente, garantir a sobrevivência de uma determinada prática ou abordagem em um determinado local, por um determinado tempo, que transcende a existência de seus indivíduos. Ou seja, os indivíduos adotam práticas que, muitas vezes, são padrões sociais, não necessariamente garantindo sua própria qualidade de vida, mas sempre com benefício para a reprodução e, principalmente, para a reprodutibilidade de sua própria cultura.

Yuval Harari um historiador que despontou nos últimos anos, acerta ao mostrar que a visão memética de Dawkins tem seus equivalentes em outras ciências, como o pós-modernismo para a sociologia e a teoria dos jogos para e economia e comportamento. Harari retoma essa discussão com outra abordagem, explicando que os modelos de estruturação de sociedades humanas não se preocupavam com a qualidade da vida de suas unidades vivas, seres humanos. Nesta visão os diversos modos de organização cultural que conhecemos são aqueles que adotaram modelos de operação e funcionamento mais eficientes em se reproduzir no espaço e tempo. A cultura aqui ganha ares de superorganismo que, cotidianamente, chamamos de sistema. O sistema (cultura) se mantinha com uma ciclagem e consumo rápido de vidas humanas de uma maneira autônoma, como se existisse uma força ou sistema de crenças malévolo e invisível guiando as pessoas. O sistema tritura as engrenagens rebeldes ou desajustadas ao seu ciclo impiedoso de consumo das vidas?

Essa força invisível presente na biologia e na história não produz um sentido coerente. Ou seja, o caminho da evolução ou da história permite apenas descrições posteriores…podemos apenas explicar “como” e não “porquê” as coisas se desenrolaram da forma como aconteceu. Isso não significa que forças geográficas, biológicas e econômicas não sejam definidoras dos caminhos, porém a maneira como os fatos desenrolaram não conseguem encontrar explicação coerente que justifique os caminhos tomados. Nesta lógica tanto a evolução como a história não caminham em função do bem-estar ou melhoria do humano. Estes sistemas não precisam ser, necessariamente, bons ou cruéis para com seus membros, porém sistemas que se tornaram comuns por populações dispersas em extensões continentais foram os mais irascíveis em promover a extinção de outros modos de vida, ocupando vários espaços. Como exemplo, poderíamos dizer que o cristianismo só teve o mérito de persistir (talvez por incutir uma ideia de superioridade que permitiu arrasar as demais culturas), não foi uma escolha lógica de maior eficiência e não trouxe avanços em termos de bem-estar aos seus praticantes, em relação aos demais modelos culturais.

Cabe destacar que modelos de cooperação e coexistência também existiram, mas reagiam de forma lenta ou muito pacífica aos inimigos. Resta saber o que faremos nos próximos séculos diante da situação de colapso ambiental global sem possibilidade de fuga ou conquista de novos territórios.

Assim como a história mitológica da caixa de Pandora[1], Darwin só emprestou o nome para o paradigma explicativo e ao modelo de visão sobre a realidade que assola a trajetória humana, ele não criou os males da humanidade. Resta saber se, como no mito de Pandora, Darwin guardou definitivamente a esperança dentro da caixa. Será que o caminho natural é a geração desses sistemas trituradores de vida?

Se acreditarmos que esse é somente um paradigma ao qual estamos presos e não uma conjuntura fatal da qual não podemos escapar, talvez exista fé para continuarmos a buscar uma saída.

Enfim, este texto contribuiu para que você a guardasse a esperança na caixa?


[1] Pandora foi a primeira mulher que existiu. Tinha sido feita à semelhança de seus deuses criadores. Foi enviada ao titã Epimeteu, que já havia sido orientado por seu irmão a não aceitar presentes dos deuses. Epimeteu recebeu também dos deuses uma caixa, como presente de casamento, que continha todos os males. Pandora abriu a caixa, inadvertidamente, e todos os males escaparam, exceto a esperança que conseguiu aprisionar no fundo da caixa.

Rodrigo Lemes

Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia (1999), mestrado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (2002) e doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). É professor do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade (NUPEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 2009. Atua na área de Desenvolvimento Sócioambiental e Ecologia Evolutiva, com experiência em gestão de projetos de caráter interdisciplinar. É representante do NUPEM no Conselho Consultivo do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (CONPARNA).

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