NOSSAS PARAVRAS VEM DE LONGE

Por muitos anos não entendi o incômodo que partia de alguns dos meus familiares ao se referirem ao lugar onde nascemos. Jardim Brasil, Zona Norte da grande São Paulo. Ali pela área do Jaçanã, do famoso trem das onze da canção de Adoniran Barbosa. Durante a minha infância entre os incômodos deles, surgiam também os meus. Cresci ouvindo o quão ruim era ser uma pessoa que “fala errado” e o que acontecia com elas no mundo lá fora. Seja pedindo informação, apresentando um trabalho, mas, principalmente, numa entrevista de emprego. Descobri então, com certa maturidade, que toda essa questão poderia estar relacionado a algum tipo de preconceito linguístico. Não com essas palavras e sem saber muito do que significava, de fato, tal preconceito.

No processo de construção de diversos países europeus, houve uma aproximação de diversos “dialetos” que foram constituíndo historicamente o que hoje entende como a língua francesa, portuguesa ou espanhola. Aliás, entre esses dois últimos países é possível observar um gradiente de de modos, sonoridades e vocabulários que vão se transformando a medida que você segue viagem de um país a outro. Na espanha, ainda hoje há disputas linguísticas bem intensas e a língua espanhola coexiste a língua catalã na região da Catalunha. Assim podemos observar que há uma relação e um apecto histórico, cultural e social fortemente conectado ao uso de uma lingua ou de outra, ou mesmo de suas variações. Ao me aprofundar nos estudos das relações étnico raciais, também percebi que esse preconceito linguístico sempre foi atravessado pelo racismo. Desde o violento processo de colonização que, de muitas formas, permanece no nosso cotidiano até hoje, a palavra-mundo-linguagem de nossos ancestrais sofreu apagamento. Apagamento esse que foi difundido por toda a nossa cultura em si, por todos os costumes, religiões, rituais, danças e formas de expressão. Faço questão de lembrar que a linguagem aqui pautada não é relatada apenas como um meio sistemático de se comunicar, mas como um território, como corpos, movimentos, histórias.

Alguns autores vão chamar esse apagamento de epistemicídio, ou seja, “assassinato” de um conhecimento. Isso pois, a oralidade, em diversas culturas africanas e afro-brasileiras, é uma das principais maneiras de se transmitir a história, conhecimento, canções, mitos e vivências de um povo e/ou grupo, garantindo assim sua identidade. Como bem aponta Amanda Crispim Ferreira (2012), a memória é um elemento indispensável na construção de uma identidade nacional, por ser à partir dela que podemos atualizar informações e impressões passadas, compondo e recompondo nossa própria história. Sendo assim, a memória é extremamente importante para a fomação da nossa identidade pessoal e também das identidades comunitárias, onde se alicerça então uma memória coletiva e democrática.Há riscos muito grandes quando tais memórias são construídas fora dessa democracia, como podemos entender melhor no famoso discurso promovido pela escritora e contadora de histórias Chimamanda Ngozi Adichie no TEDGlobal (2009), chamado O perigo da história única. Tal discurso/vídeo – posteriormente transformado em um livro com o mesmo nome -, é incrível do início ao fim. Cito ele aqui pois, ao refletir sobre o “falar certo”, lembrei que ela ressalta como é impossível se abordar sobre uma história única sem falar do poder, pois como tais histórias são contadas, quem as conta, quando e quantas são contadas, está diretamente ligado a ele (09m29s). Em seguida, principia o momento em que ela nos apresenta uma palavra de origem africana que surge sempre que pensa na estrutura do poder no mundo, chamada “nkali”, um substantivo que pode ser traduzido por “ser maior do que o outro” e, logo após, nos faz compreender, de forma muito didática, como o poder também se configura como a capacidade de contar a história de outra pessoa, tornando-a definitiva na existência dessa pessoa (10m03s).

Uma das formas de desapropriar um povo é contar a sua história. Comece a história do Brasil na perspectiva da população indígena nativa do nosso país e terás uma totalmente diferente do que nos é ensinado no livros de história da escola: a colonização no nosso país não foi um descobrimento e sim uma invasão. Como resultado dessa violência, houve imposição de costumes, religiões, danças, rituais e linguagem, todos atravessados pelo regime escravista. Estudos mostram que cerca de 90% das linguas índigenas existentes na época do tal “descobrimento”, hoje estão extintas (restam 181 de cerca de 1500). Além dos nativos, a colonização europeia é marcada igualmente pela exploração da mão de obra de negros trazidos do continente Africano nos navios tumbeiros.

No artigo A categoria político-cultural de Amefricanidade da brilhante intelectual de nome e sobrenome Lélia Gonzalez (1988), é resgatada a dificuldade do nosso processo de indentificação como povo, não apenas como brasileiros, mas como amefricanos. Perpassados violentamente pela colonização portuguesa, como a desumanização e racismo que tirou de todos os negros a alma, essa invasão nos traz na mesma gravidade o gosto cruelmente amargo do projeto de um embranquecimento social e cultural, presente até os dias de hoje. Assim, por Amefricanos, Lélia propõe basicamente que não podemos voltar à origem dos nossos ancestrais, não podemos voltar à Africa, não há como desfazer o que já foi feito. Mas nós carregamos África dentro de nós, carregamos essa ancestralidade dentro do nosso povo, da nossa história, do nosso eu.

Toda a pressão e julgamento às pessoas que não falam a “norma culta”, as considerando erradas é, na verdade, parte da nossa história. O caráter tonal e rítmico de muitas das línguas africanas trazidas para o Brasil durante a escravidão indicam um aspecto pouco explorado da influência negra na formação da história e cultura do nosso continente, pois elas apresentam ausência de algumas consoantes como o ‘L’ e o ‘R’, que influenciaram no nosso idioma, como na terminação de infinitivos verbais, por exemplo. Desde criança, sempre ouvi também que falar errado era coisa de “gente ignorante”. Mal sabia que, por todos esses processos, ignorávamos que o “Eu sou framengo, tá?”, ou o “Vou te contá, que os olhos já não podem vêee” são, na realidade, herança de nossas origens. Por isso também nossa língua é diferente do português de Portugal. No Brasil falamos Pretoguês! (GONZALEZ, pág. 70, 1988).

Com o perverso incentivo e promoção do embranquecimento cultural e social na nossa população, o preconceito linguístico com nosso Pretoguês se estende à nossa história, fazendo com que acreditemos ser motivo de vexame ou vergonha características herdadas de reis e rainhas, de uma diversidade de culturas. Acreditar que estamos fora do padrão ou do “correto”, nos faz ter vergonha do lugar onde nascemos e crescemos e não ter orgulho e enxergar o tamanho da potencialidade das movimentações negras e periféricas, independente de onde as mesmas se articulam. Nos faz continuamente desvalorizar a diversidade que nos torna únicos e que deveria ser exaltada. O que produzimos como brasileiros é indissociável da cultura negra.

Que caminhemos cada dia mais ao encontro de nossa amefricanidade, de modo a ressignificar todos os dolorosos atravessamentos que nos fazem sentir envergonhados, errados, humilhados e não pertencentes. Palavra sempre foi cultura, liberdade de expressão, território, mundo. Que lembremos de questionar essa história única contada como certa e universal e não mais sofrer com ela. Que caminhemos e lembremos de África e da América Latina com a riqueza e grandeza que elas merecem pulsar dentro de nós.

Referências

Amanda Crispim Ferreira. “Recordar é preciso”: considerações sobre a figura do griot e a importância de suas narrativas na formação da memória coletiva afro-brasileira – Mestranda em Teoria Literária do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários/UFMG. Periódicos Letras – UFMG (periodicos.letras.ufmg.br), p. 1-15, 2012.

Chimamanda Ngozi Adichie. O perigo da história única. TEDGlobal – 2009. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt, acessado em:17/04/2021 às 23h14.

Lélia Gonzalez. A categoria político-cultural de amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988.

Stella Almeida

Caminho de vida que segue com arte escrita, desenhada e sentida. Arte e educação movimentam o seu existir. Stella é graduanda em Ciências Biológicas no NUPEM - UFRJ, Diretora de arte, cultura e criação da LASCOM Cebes Macaé, e bolsista de Iniciação Científica do Projeto 'Ativismo alimentar, sustentabilidade e defesa da biodiversidade: o caso do Movimento Slow Food Brasil'. É também integrante dos projetos de extensão 'Afric(a)ção'; 'Vou para o Sul saltar o cercado: narrativas femininas para o incentivo de meninas na Ciência'; e 'Produção e Recepção de Mídias na Formação de Professores' e da 'Comissão de Direitos Humanos e Combate à Violência' (CDHCV), na UFRJ Campus Macaé. Sua atual área de estudo e Projeto de Conclusão de Curso se encontram na educação e nas relações étnico raciais e de gênero, contextualizadas com as ciências ambientais.

3 comentários em “NOSSAS PARAVRAS VEM DE LONGE

  • 24 de abril de 2021 em 12:09
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    Quanto mais deixamos o tempo passar sem agarrar nossas raizes mais dificil fica de concientizar que somos todos iguais somos carne e ossos como todos
    Temos sentimentos , amor ao proximo, criativos, inteligentes, parceiros de todos .
    É tudo pra ontem
    É tudo para o presente
    É sucesso para o futuro
    Estamos com você
    Graduanda
    Stella Almeida
    Um fortissimo abraço

  • 24 de abril de 2021 em 13:53
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    Incrível texto! Parabéns

  • 21 de maio de 2021 em 11:06
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    Achei muito bom este site! Fizeram um ótimo trabalho.
    Parabéns!!!

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