Etnobotânica hoje e no futuro

Segue abaixo um trecho do capítulo “Ethnobotany Today and in the Future” escrito por Ghilleant T. Prance para o livro “Ethnobotany: Evolution of a Discipline” editado por Richard Evans Schultes e Siri von Reis, Timber Press, Portland: London.

Aqui está claro um entendimento essencial, necessário para revermos questões fundamentais sobre a riqueza de nossos povos originários. Leiam também: https://www.nytimes.com/pt/2020/10/02/opinion/arvores-amazonicas.html#click=https://t.co/jJQMJpbof7

Ghilleant T. Prance

A etnobotânica chegou num momento emocionante da sua história. Durante muitos anos, esta importante ciência se preocupou, basicamente, com a catalogação das inúmeras plantas utilizadas pelos povos indígenas ao redor do mundo. Esta é a base fundamental para qualquer ciência biológica. Sem um catálogo ou inventário das interações entre as pessoas e as plantas não é possível o progresso em outras áreas que vão caracterizar a etnobotânica no futuro. Mesmo estando ainda na fase de catalogação, a etnobotânica tem se caracterizada como um estudo multidisciplinar envolvendo a interação entre botânicos, antropólogos, químicos, farmacologistas e especialistas em outros campos.

Não só descrição de plantas foram realizadas, como, por exemplo, temos as muitas publicações de Richard E. Schultes, do Botanical Museum Leaflets, da Universidade de Harvard, colaborando com um relatório com uma série de novos compostos químicos, baseados nestas coleções botânicas. Muitos destes compostos têm se mostrado como biologicamente ativos, e, como resultado deste trabalho, alguns têm sido encontrados em sociedades muito além do único grupo indígena em que foram descobertos.

Sem a grande biblioteca de conhecimentos básicos sobre a utilização das plantas, a química das plantas e as culturas indígenas, instrumentos fundamentais para a presente fase da etnobotânica, a investigação não poderia começar. É trágico que o inventário está longe de ser completo, simultaneamente quando a planta do conhecimento dos povos indígenas, construído ao longo de milhares de anos de interação com seu meio ambiente, está se perdendo a um ritmo cada vez maior.

Os cientistas não serão mais capazes de reunir dados ecológicos, agroflorestais e de manejo do solo, quando os grupos indígenas forem aculturados ou exterminados. Portanto, é necessário reunir, agora, todas as informações possíveis a partir de remanescentes de grandes culturas indígenas do mundo, tais como as dos indígenas sul-americanos, o Africano “homem-arbusto”, ou os nativos da Nova Guiné. É importante que tenhamos uma completa compreensão do modo de vida desses povos e não apenas um catálogo das plantas úteis na cura, na boa alimentação ou nas melhores fibras. Muitas dessas plantas úteis podem ser perdidas para sempre se não aprendermos rapidamente com eles como elas são cultivadas e adaptadas para serem úteis.

A destruição das florestas tropicais do mundo continua a um ritmo alarmante. O que é ainda mais preocupante é que grande parte desta destruição obviamente não faz sentido econômico, em termos de resultados. Os custos superam os benefícios para todos os interessados. As pastagens de gados abandonadas da Rodovia Transamazônica, as ruinas dos solos da África Central, ou as florestas devastadas da Malásia são testemunhas desse fracasso.

Na maior parte destas áreas, antes da invasão pela civilização ocidental, altas populações eram sustentadas com muito menos danos ao ambiente. Como foram com os índios pré-colombianos, que ainda assim preservaram uma abundância de animais, tais como o já quase extinto peixe-boi e as tartarugas gigantes da Amazônia, qual seria a espantosa diversidade da floresta? A sua gestão foi, obviamente, muito mais eficiente do que as dos ocidentais, que em muitas regiões, foi destruída em grande parte (Roosevelt 1985).

É, portanto, crucial aprender, tanto quanto puder, sobre indígenas, assim como sobre a ecologia e os sistemas de gestão adotados por eles antes que seja tarde demais. Seria uma pena perder todo esse conhecimento sobre o mundo, isso é iminentemente necessário para melhor administrar a vasta área continental que se situa entre os trópicos de Câncer e Capricórnio. O desafio para a etnobotânica é descobrir o quanto dessa informação se mantem, antes que seja tarde demais, e distribuí-lo para as pessoas que podem tomar decisões para ajudar os povos e as plantas.

Embora haja muito ainda a ser feito em catalogação etnobotânica e embora isso seja mais urgente hoje do que no passado, como no caso dos grupos indígenas que perdem as suas tradições tão rapidamente ou mesmo se extinguem (por exemplo, Davis 1977), muitos outros desenvolvimentos estão adicionando para o interesse cientifico e importância global da etnobotânica, quatro dos quais são discutidos neste capítulo (na presente tradução iremos focar apenas nas duas primeiras seções do capítulo).

Uma Abordagem Interdisciplinar

Etnobotânica sempre foi considerado extensão de interdisciplinar da ciência. Em particular, tem cooperado com a botânica e a química – por exemplo, trabalhos sobre variedades das plantas alucinógenas da Amazônia (Der Marderosian et al. 1968; Schultes and Holmstedt 1968; Schultes et al. 1969; River and Lindgren 1972; Buckley et al. 1973; Schultes and Swain 1976) e trabalhos sobre tratamentos com alcalóides (Marini-Bettalo et al. 1957). Em geral, no entanto, etnobotânica muitas vezes tem faltado na interação entre disciplinas.

Trabalhos realizados por botânicos com pouco conhecimento em etnologia e com pouco contato com antropologistas, ou antropologistas com parcos conhecimentos em biologia, que normalmente coletam espécimes que são difíceis de serem identificados Esta separação das disciplinas é mantida, em parte, por políticas básicas de várias fundações de pesquisa. Por exemplo, alguns anos atrás eu planejei colaborar com o antropologista, Roberto Carneiro, de uma instituição vizinha, o Museu Americano de História Natural. Nosso propósito era fazer um inventário quantitativo de etnobotânica de uma floresta no território indiano Kuikurú que foi primeiro rejeitado pela sessão biologia de sistemática da Fundação Nacional de Ciência, porque era considerada antropologia. Mais tarde, nossa proposta foi rejeitada pela seção de antropologia, da mesma organização, porque era considerada biologia! Estas rejeições atrasaram os estudos por oito anos mas, graças a uma fundação privada (The John Edward Noble Foundation), estes estudos foram concluídos (embora com indígenas sul americanos distintos dos almejados Kuikurú) com resultados espetaculares. Esse estudo nos permitiu realizar dois inventários quantitativos – botânico e o antropológico – da área indígena da Amazônia.

Um dos aspectos mais importantes para o futuro da etnobotânica é a manutenção da proximidade de trabalhos relacionados entre diferentes disciplinas: botânicos, antropologistas, químicos, geólogos, entre outros. Um bom exemplo da eficiência da abordagem deste time foi o trabalho coordenado por Darrell Posey sobre os povos originários Kayapó de Gorotire, Brazil. Posey foi capaz de colocar junto um impressionante time, para estudo de etnobiologia dos Kayapó. O resultado foi a prospecção de diversos ingredientes ativos, garantindo assim, que estes fossem analisados em laboratório. Muitos trabalhos químicos feitos no passado, obtiveram resultados negativos, pois a performance das análises não levou em consideração o produto utilizado, mas sim a média das plantas secas. Uma abordagem interdisciplinar, no entanto, seria susceptível de produzir resultados significativos no futuro.

Etnoecologia

Um dos avanços atuais da etnobotanica tem sido a inclusão da ecologia. Muito do notável desenvolvimento tem sido resultado de uma ênfase nos aspectos ecológicos, tais como: interação animal-planta, coevolução, mecanismos de defesa, sucessão ecológica, demografia das arvores e ecologia de clareiras. Isto tem transitado na etnobotanica e está dando resultados consideráveis.

Por exemplo, a descoberta de que os indígenas da Amazônia têm considerável sucesso no gerenciamento da floreta tropical, mantendo um sustentável e prolongado rendimento de insumos básicos, o que é marcadamente contrastante com os projetos de exploração e desenvolvimento contemporâneo. Revela a existência de uma vasta história de informação ecológica desses indígenas desenvolvido nos mais de 10.000 anos de experiência em ambientes florestais. Seus conhecimentos ecológicos e sua experiência de gerenciamento, em muitos aspectos, é, provavelmente, muito mais útil que o conhecimento puro sobre o uso das plantas. Assim, essas pesquisas sugerem que os indígenas da Amazônia têm uma quantidade incrível de informação ecológica para contribuir, e que, em breve, será tarde para extrair o pequeno restante de informações que sobrevive hoje.

Alguns dos melhores exemplos de tais estudos são, novamente, Posey e colaboradores (e.g., Posey 1983a, 1984, Posey et al. 1984). Cujo estudo detalhado dos indios Kayapó tem mostrado aspectos muito interessantes da ecologia. Como exemplo, o habito Kayapó de plantio de árvores e ervas ao longo de trilhas na floresta. Trilhas que para os leigos parecem ir por entre floresta virgem são, na verdade, ecossistemas manejados com plantações que fornecem alimentos, medicamentos e outras necessidades aos caçadores e viajantes. Algumas plantas tolerantes à sombra crescem em baixo desse tipo de manejo, plantas que nunca iam se desenvolver em clareiras abertas no campo (Posey 1984). O Kayapó, além disso, tem um conhecimento fenomenal do uso de insetos, como mecanismo de defesa para sues cultivos e como uma fonte de produtos úteis tal como o mel (Posey 1983b).

O manejo por corte e queimada, frequente nos sistemas de agricultura indígena, foi, durante um tempo, considerada ação esbanjadora, pois os campos eram utilizados apenas por dois ou três anos e, em seguida, os mesmos eram abandonados para regeneração. Estudos têm mostrado que, em muitos grupos indígenas, esta afirmação está longe da verdade. Posey (1984) chamou estas antigas áreas agrícolas de nada mais que campos abandonados e mostrou que estes são frequentemente revisitados pelos indígenas, que exercem um continuo manejo de recursos que fornecem itens importantes para a vida deles, incluindo plantas comestíveis e medicamentos.

Os Kayapós não são os únicos indígenas que fazem manejo de campos antigos. Mais e mais estudos estão mostrando que estas áreas são conscientemente manipuladas por índios agricultores. Um bom exemplo é o dos indígenas Bora, no Peru, que foram objeto de estudos multidisciplinar (Denevan et al. 1984, 1985; Padoch et al. 1985; Denevan & Padoch 1988). Nestes estudos, Denevan & Padoch analisaram antigos campos de três a dezenove anos. Estes campos, existentes em diferentes fases de sucessão, contribuem de importantes recursos depois que o cultivo anual básico se encerra. As diversas espécies florestais que permitem a regeneração contêm uma mistura de espécies plantadas úteis (frutas tais como uvilla, Pourouma cecropiifolia Martius, e umari, Poraqueiba sericea Tul) e numerosas espécies florestais, algumas das quais também usadas como alimento, fibra, medicamentos e outros itens úteis.

Outros estudos de etnobotânica, que têm ido muito além da catalogação do uso das plantas, é o trabalho de Janis Alcorn sobre os Maias de Huastec (Alcorn 1981, 1984, 1989). Estes focam na interação planta-homem, mas concentra-se nos contextos ecológicos e aspectos dinâmicos. Alcorn tem proporcionado uma ampla e cuidadosa imagem de como povos originários Mexicanos estão relacionados com o ambiente. Entre vários aspectos interessantes da etnobotânica de Huastec está o fato deste grupo supostamente gerir campos abandonados.

O uso dos chamados campos de alqueive (terra de pousio) não é de forma alguma limitada às pessoas do Novo Mundo. Kunstadter (1978) discutiu este assunto entre o Lua’ swiddeners (aqui temos uma flexão do termo swidden que significa uma área desmatadas para cultivo temporário por corte e queima da vegetação) do nordeste da Tailândia.

No estudo dos Kayapós, Posey & Anderson (1985, Anderson & Posey 1989) encontraram que 94% de 368 plantas coletadas nos campos antigos eram medicamentos importantes para os indígenas. Isto é para além de todos os outros produtos obtidos destas áreas: comida, iscas para peixe e pássaro, tintas, óleos, repelentes, lenha, materiais de construção, fibras, assim por diante.

Outro interessante aspecto do estudo Kayapó é o uso de clareiras naturais na floresta para a plantação da cultura. Estas clareiras são criadas por quedas naturais das arvores ou de origem antropogênica Kayapó quando eles derrubam uma arvore pata coletar alguma coisa, como mel. Então, com pequenas clareiras na floresta o Kayapó planta uma vasta gama de culturas, incluindo mandioca, taro, cupa (Cissus gongylodes Burch ex Baker), inhame e feijão. Estas culturas prosperam em tais áreas, onde a produtividade é maior do que nos campos abertos.

Há muitos outros exemplos de conhecimento ecológico dos povos indígenas (Salick 1989). Como a etnobotânica se transforma cada vez mais, mais descobertas excitantes estão sendo feitas. Os indígenas Sateré-Mawé (maués) têm cultivado, durante muitos anos, uma planta estimulante, o guaraná (Paullinia cupana var sorbilis Ducke). O que é pouco conhecido é que as folhas novas desta planta têm em torno de suas margens uma série de nectários extraflorais, que são visitados por muitas formigas protetoras. Esses nectários desaparecem com o tempo nas folhas que estão maduras, fato esse que tem sido pouco estudado cientificamente. Os maués sabem, no entanto, que as plantas de guaraná vão crescer e produzir mais quando infestados por formigas para alimentação nos nectários extraflorais das folhas jovens. Essa abordagem difere muito da moderna agricultura que sugere a utilização de pesticidas para matar todos os insetos, sejam amigáveis ou nocivos.

A mais moderna agricultura na Amazônia sofre muito de solos pobres que são difíceis de gerir. Para a agricultura são muito apreciadas as poucas manchas de solo escuro rico em húmus que ocorrem em áreas espalhadas por toda a Amazônia, especialmente em zonas rodeadas por solos arenosos extremamente pobres. No Brasil esse solo é denominado terra preta de índios, pois é um solo que remonta aos antigos ocupantes dessas áreas (Smith 1980). Estes grupos, obviamente, tinham uma tecnologia para criar um solo mais rico na Amazônia. Eles não deixam o rastro de desastres e da erosão que se seguem muitos projetos “modernos” de agrícultura em solos tropicais.

Novos trabalhos ecologicamente orientados estão aparecendo cada vez mais (por exemplo, Carneiro 1983 estudou a utilização da mandioca pelos índios Kuikurú), e o futuro da etnobotânica, certamente, envolve muito mais ênfase em ecologia. De certa forma, a cobrança presente pela informação é mais uma tarefa muito mais difícil e extensa do que o impetrado pelos etnobotânicos antigos. Esses trabalhos são realizados com sucesso apenas quando ocorre uma mais profunda compreensão da cultura e das plantas envolvidas, que só foram alcançadas a longo prazo e por meio de, às vezes, tediosas investigações.

É relevante o fato de que a maioria dos estudos etnobotânicos que fornecem informações ecológicas importantes são de longa duração e multidisciplinar. Isto significa que, no futuro, temos de permitir que etnobotânicos passem longos períodos com os grupos que estão estudando e temos de incentivar a participação de especialistas dos diversos campos, que podem contribuir para etnobotânica, incluindo antropólogos geógrafos, químicos, cientista do solo, entomólogos e outros.

Tradução de:

Prance G.T. 1995. Ethnobotany Today and in the Future. In. Schultes R.E. and von Reis S. Ethnobotany: Evolution of a Discipline. Timber Press, Portland: London. P. 60-68.

Bibliografia incluída

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Rodrigo Lemes

Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia (1999), mestrado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (2002) e doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). É professor do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade (NUPEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 2009. Atua na área de Desenvolvimento Sócioambiental e Ecologia Evolutiva, com experiência em gestão de projetos de caráter interdisciplinar. É representante do NUPEM no Conselho Consultivo do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (CONPARNA).

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