A boa nova da sociedade colaborativa: será que precisamos possuir para utilizar?

A tão esperada “alternativa ao capitalismo” não irá surgir como uma drástica ruptura social e econômica. Aos poucos, às vezes sem percebermos, as mudanças já estão acontecendo. Juntamente com os avanços graduais das novas tecnologias surgem novas formas de produção, trocas e meios de se relacionar economicamente, ou seja, as estruturas de mercado vão se modificando gradualmente conforme novas possibilidades e meios começam a surgir.

Para conseguirmos observar essas sutis mudanças é preciso compreender algumas nuances do sistema capitalista e o sentimento de egoísmo e consumismo que ele instaura, como a forma sistemática que produz desigualdades de poder e de distribuição de recursos; as relações de concorrência exigidas pelo mercado capitalista produzem formas de sociabilidade empobrecidas, baseadas no benefício pessoal em lugar da solidariedade; a exploração crescente dos recursos naturais em nível global, que põe em risco as condições físicas da vida na terra¹, e, será mesmo o crescimento econômico a fonte exclusiva de desenvolvimento e felicidade? Existe algum caminho para uma sociedade menos desigual e em equilíbrio com a natureza?

Para o pesquisador Português Boaventura de Souza Santos (2002), o caminho para uma sociedade igualitária não é pensar no econômico separado do social, da educação, político, cultural e ambiental. Pelo contrário, o autor sugere que devemos considerar o econômico como parte integrante de uma sociedade¹.

Neste sentido nota-se, nos últimos anos, o crescimento de termos como “cooperação popular” e “economia compartilhada”, referindo-se a economia colaborativa. Ambos possuem o mesmo significado, desde que a finalidade seja melhorar a situação econômica por meio de redes e plataformas, que propiciem o encontro direto de demandantes e ofertantes de recursos ou serviços, tornando as trocas mais frequentes e eficientes, propagando o sentimento de solidariedade e destacando as potencialidades e necessidades de uma determinada região². Ou seja, proporcionando uma reconexão entre as pessoas e com o território em que elas vivem.

Segundo o artigo de Isabelle Antonello e colaboradores (2020), a característica central desse fenômeno é o fato de estar baseada na solidariedade e reciprocidade, encontrando no tecido social local ou comunitário os meios necessários para a criação de recursos de acordo com o que se tem disponível em determinado lugar². Como quando grupos de vizinhos se juntam para fazer uma horta comunitária no bairro ou quando pais se juntam para cuidar dos filhos uns dos outros, as chamadas creches parentais.

Dito isso, a economia colaborativa surge, então, quando uma rede de pessoas se conecta diretamente para resolver problemas ou criar novas possibilidades e estratégias sem depender de grandes instituições centralizadas e hierárquicas³. Essas novas práticas alimentam a proliferação de um circuito de trocas não-monetárias, cujo objetivo é, para além da satisfação utilitária dos bens ou serviços, fortalecer ou criar vínculos sociais entre as pessoas envolvidas⁴. Isso contribui não só para a diminuição do desemprego, por exemplo, mas promove novas formas de troca econômica além do modo mercantil (são demandados menos recursos, com um número maior de beneficiados), incentivando a participação da comunidade e colaborando para o desenvolvimento do poder local.

Propaga-se, assim, a ideia de variações do compartilhamento pessoa-para-pessoa, a partir de bens que podem ser compartilhados, quais sejam: carros, alimentos, serviços, motos, moradia, informação, tecnologia, etc². Como exemplo podemos destacar o Blablacar (aplicativo de caronas que facilita o deslocamento das pessoas de uma cidade a outra) e o AirBnB (plataforma on-line comunitária para anunciar, descobrir e alugar, acomodações e meios de hospedagem). E, consequentemente, reduzem-se os impactos ambientais negativos, como por exemplo, a diminuição da emissão de gases que contribuem para o aumento do efeito estufa.

Nesse processo a importância do desenvolvimento da tecnologia e o papel das tecnologias de comunicação são contribuir para a diminuição dos custos de transação e facilitar para que os processos ocorram de maneira mais acessível. Tanto no processo de transformação de um produto se tornando serviço, quanto para um mercado redistributivo. Um bom exemplo para esse processo são os sites de venda ou troca de produtos usados.

Contudo, crescemos em uma sociedade capitalista que nos ensina desde pequenos que somos felizes pelo consumo, invisibilizando o quadro de recursos escassos, ou mesmo tornando a competição algo natural, ou seja, precisamos competir uns com os outros para sobreviver. Dessa forma, esses fatores psicológicos geram uma resistência para que as pessoas acreditem na possibilidade de sucesso de novas formas de relações econômicas.

Aqui, cabe reforçar que, apesar de os recursos naturais serem sim finitos, a capacidade deles de transformação não o é, é infinita. Tudo está em constante transformação. A vida na terra se mantém dessa forma, de forma circular. O lixo orgânico, por exemplo, pode se tornar adubo para nosso alimento quando triturado e mistura a terra. E é esse ciclo que garante a continuidade e a sustentabilidade da vida. Contudo, nós não nos inserimos nesse ciclo, agimos como a única espécie que pensa de forma linear, separada da natureza. Mas, a resposta à escassez de recursos está na capacidade de transformação, que só acontece quando a gente inova e, nós só inovamos quando colaboramos e percebemos que as pessoas que estão ao nosso lado são potenciais parceiros em construir novos serviços e produtos através de uma união e movimentação coletiva. Se estivermos apenas preocupados em garantir a nossa própria sobrevivência, isso não acontece.

Na economia tradicional, o papel do que chamamos de agentes econômicos é garantir que só irá acessar um determinado recurso, quem poderá pagar por ele. Já na economia colaborativa, o papel do agente econômico é conectar pessoas para os recursos fluírem de onde eles estão para onde eles precisam chegar⁵. Será então queprecisamos possuir para utilizar?Ou será que simplesmente precisamos ter acesso as coisas? Por que não transformar produtos em serviços? Por que a minha identidade é construída através das coisas que possuo? Se eu não tivesse que trabalhar tanto para possuir essas coisas eu teria tempo de conhecer melhor o meu vizinho que, por acaso, poderá ter uma furadeira pra me emprestar ao invés de eu ter que compra-la.

Dessa forma, se identifica uma economia colaborativa quando uma plataforma, por exemplo, disponibiliza um olhar mais pessoal para o que se deseja. De acordo com o pesquisador Ricardo Abramovay (2014), trata-se de um novo modelo socioeconômico que horizontaliza as relações humanas, descentraliza os instrumentos de produção e troca e abre caminhos para laços de cooperação direta entre indivíduos⁶. Sem romper com a ideia de que o trabalho é o grande integrador, mas vislumbrando um compromisso social de uns com os outros e o desenvolvimento econômico da própria comunidade². Fatos que estão em contraponto com o sistema capitalista atualmente instaurado na nossa sociedade, pois incentiva a autonomia, colaboração solidária, a empatia, o olhar interseccional das pessoas sobre os acontecimentos do seu próprio território e, para além, uma qualidade de vida que não nos contaram ser possível. Estamos diante da base para uma nova política e economia, a alienação tende a ser substituída por uma nova consciência, que não será dos valores mercantis, mas sim da solidariedade e da cidadania⁷.

Referências:

¹ SANTOS, Boaventura de Souza. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. In: Boaventura de Souza Santos (Org.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

² ANTONELLO, Isabelle Pinto; SOUZA, Leandro Souza de; SOUZA, Liége Alendes de. A regulamentação das práticas de economia colaborativa como incentivo ao desenvolvimento local e à cidadania. Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 2,p.8644-8657 feb. 2020. ISSN 2525-8761.

³ Texto narrado por Camila Haddad no vídeo: “O que é economia colaborativa?”- Minas que manjam; COMUM; 2016; https://www.youtube.com/watch?v=e5al0pFyQWw.

⁴ FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de. A problemática da economia solidária: um novo modo de gestão pública Cad. EBAPE.BR vol.2 no.1 Rio de Janeiro Mar, 2004.

⁵ Texto narrado por Camila Haddad no vídeo: “O Uber é economia colaborativa?”- Minas que manjam; COMUM; 2016; https://www.youtube.com/watch?v=HDa41Y4AcEo).

⁶ ABRAMOVAY, Ricardo. A economia híbrida do século XXI. In: Costa, E.; Augustini, G. De baixo para cima. Rio de Janeiro, dez. 2014.

⁷ Ideias demonstradas na apresentação da obra: “Por uma outra Globalização” de Milton Santos, 2003, por Maria da Conceição Tavares.

Natalie Camargo

Natalie Camargo Prates possui graduação em Ciências Biológicas-Bacharelado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2020) no Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade (NUPEM/Macaé). Tem experiência na área de Ecologia, com ênfase em Ecologia de Praias, Conflito ambiental, Conselho de meio ambiente, Participação social, Justiça ambiental e Conservação de praias. É integrante do Grupo de Pesquisa Estudos Socioambientais e Ecologia Política (GESEP), e do Grupo de Estudos em Educação, Mediações e Tecnologias (GEEMT) na Universidade Federal do Rio de Janeiro Campus Macaé. Também é microempreendedora individual, co-fundadora e gerente da marca Rookz.

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