Preto e laranja: a mistura de cores que é (quase) uma exclusividade feminina

Pereira, gata fêmea moradora do município de Quissamã – Rio de Janeiro. Foto: Isabella Oliveira

Os gatos domésticos acompanham os seres humanos há milhares de anos e nesse tempo passaram por muitas mudanças evolutivas. Os gatos domésticos pertencem a família Felidae e ao gênero Felis, mas muitos estudiosos acreditam que esses animais sejam descendentes da espécie Felis silvestris. Não se sabe ao certo quando e onde ocorreu a domesticação desses animais, mas existem registros da presença desses animais em pinturas feitas há cerca de 3500 anos, durante a Era do Ouro no Egito. Com o avanço da agricultura e o aumento de cultivo e armazenamento de grãos, houve uma proliferação e, consequentemente, um aumento nas populações de gatos, pois estes eram atraídos pelos roedores e ajudavam no controle desses animais.

Você com certeza já deve ter visto por aí gatos de inúmeros tipos e cores e isso se deve às diferentes raças existentes no mundo. A cor da pelagem dos gatos domésticos é determinada pela presença de um pigmento chamado melanina. Esse pigmento pode ser de dois tipos: a feomelanina que produz a cor laranja e a eumelanina que produz a cor preta. A cor dos gatos então varia basicamente entre branco, laranja e preto, podendo inclusive apresentar uma mistura das três cores, em diferentes tonalidades. Os gatos que possuem as três cores (preta, laranja e branca) são chamados de “tricolor” ou “cálico”. Se a pelagem é somente preta e laranja, independente da tonalidade, os gatos são chamados de “escaminha” ou “tortie”, uma abreviação de “tortoíseshell”, que significa casco (“shell”) de tartaruga (“tortoise”).

A presença da melanina e consequentemente a cor da pelagem em gatos é uma característica genética herdada dos pais. Os gatos possuem 19 pares de cromossomos, que são estruturas presentes nas células, responsáveis por armazenar o material genético dos organismos. Um desses pares são chamados cromossomos sexuais ou alossomos, que são responsáveis por determinar o sexo do organismo. Os outros 18 pares são de cromossomos somáticos ou autossomos, responsáveis por armazenar o material genético que há em comum na espécie. O gene que expressa a feomelanina, a cor laranja, está presente no cromossomo sexual X e o gene que expressa a eumelanina, a cor preta, está presente em um cromossomo autossômico. Um alelo é uma forma alternativa de um gene, presente no cromossomo. Quando esse alelo é considerado dominante quer dizer que ele sozinho consegue expressar uma característica. Quando o alelo é recessivo, ele só consegue se expressar quando estiver presente aos pares. Alelos dominantes e recessivos para a cor laranja apresentam dois resultados diferentes: o alelo dominante laranja (XO) apresenta epistasia sobre o alelo da cor preta (B), ou seja, ele inibe a manifestação da cor preta, substituindo o eumelanina pela feomelanina. Já o alelo recessivo, chamado de não-laranja (Xo), permite a expressão do gene de cor preta (B).

Considerando que fêmeas possuem cromossomos sexuais XX e machos possuem cromossomos sexuais XY, as fêmeas heterozigotas apresentam dois alelos para este gene, enquanto os machos apresentam apenas um. Assim, em 99% dos casos, os gatos torties e cálicos são fêmeas. Isso mesmo! O preto e laranja juntos são quase uma exclusividade feminina, se não fosse por um mísero 1%! Mesmo sendo algo muito raro, alguns machos podem sim nascer com as cores preto e vermelho, porém somente como resultado de uma mutação gênica chamada aneuploidia, que consiste na adição ou perda de um cromossomo. Quando ocorre, o macho nasce com um cromossomo X a mais, porém são incapazes de se reproduzir, ou seja, são indivíduos estéreis.

Como a natureza tende sempre a manter tudo equilibrado, existe um mecanismo natural de compensação gênica para esse duplo X em fêmeas de diversas espécies, e com os gatos não é diferente. A hipótese proposta por Mary Lyon explica muito bem esse fenômeno: Lyon acreditava que o Corpúsculo de Barr era o resultado da inativação aleatória de um cromossomo X em cada célula, que passava a ser chamado de cromatina sexual. Assim, as fêmeas podem apresentar duas cores quando forem heterozigotas, ou seja, quando apresentarem um alelo dominante e um alelo recessivo para o gene laranja: na célula em que o cromossomo inativado for o dominante a cor será determinada pelo alelo recessivo e vice-versa. Dependendo do cromossomo que está ativo no grupo de células distribuídas pelo corpo do animal, a gata pode apresentar um mosaico de cores.

Se você entendeu o que eu falei até aqui, deve estar se perguntando: “Mas e a cor branca, aonde entra nessa mistura?” Pois é, a coloração branca nada mais é do que a ausência de pigmento e pode ocorrer através de três mecanismos genéticos diferentes:

  • Albinismo: mutação autossômica recessiva rara. Para ser albino, os gatos precisam ser homozigotos recessivos para o gene C que produz a enzima tirosinase, precursora das reações que produzem a melanina, responsável pela coloração;
  • Fator de pontuação branca (White spotting factor) – o gene S (spotting) é um gene dominante que produz manchas brancas no animal, podendo ser pequena até quase o corpo todo. Essa é a forma mais comum da ocorrência de coloração branca em gatos.
  • Dominante branco: é a proliferação de melanócitos, células portadoras de melanina. Nesse caso, o alelo W (White) quando presente é epistático para os genes de coloração, tanto em homozigose quanto em heterozigose, tornando-os inativos.

As diferentes combinações de cores desses felinos ainda podem ser tigrada, rajada, marrom e isso se dá de forma muito mais complexa do que a gente imagina e está relacionada com vários genes e inúmeras combinações. Independentemente da cor, sexo ou tamanho, os gatos convivem muito bem com os humanos e esperamos que essas criaturinhas carismáticas e de personalidade forte continuem presentes em nosso meio por muitos e muitos séculos.

Isabella Oliveira

Graduada no curso de Bacharelado em Ciências Biológicas - Meio Ambiente pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) através do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade (NUPEM), onde também é integrante a nível de mestrado do Programa Pós Graduação em Ciências Ambientais e Conservação. Tem experiência em biotecnologia e micropropagação de plantas e atualmente desenvolve pesquisa com o gênero Melocactus da família botânica Cactaceae no Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba.

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