Onde está o lixo?

Por Ana Lis Cardim e Ellen Guerard

Talvez ao ler o título deste texto, você tenha respondido mentalmente “está no lixão, mas é claro!” ou “no aterro sanitário” e, quem sabe ainda, “nos mares, rios e lagos”. Pois bem, se jogarmos no Google essa mesma pergunta, nenhuma dessas respostas aparece como resultado principal, sem que precisemos rolar a página. Todos esses cenários são substituídos por resultados como: “Como faço a lixeira aparecer em minha área de trabalho?”, “Onde fica a lixeira do celular?”, “Excluir e restaurar fotos e vídeos” e por aí em diante. É de se estranhar, não? Que tal conversarmos um pouco mais sobre o assunto? Vamos tentar chegar a uma resposta juntos?! 

No dicionário, lixo é definido como sujeira, imundice, coisa ou coisas inúteis, velhas, sem valor. Lixo, na linguagem técnica, é sinônimo de resíduos sólidos, ou seja, todo material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, podendo ser desde uma escova de dentes, casca de frutas e legumes, até mesmo sofás e baterias. Desse modo, ao entendermos o lixo como qualquer material sem valor ou utilidade que é descartado, compreendemos também que os seres humanos são os únicos a produzi-lo, visto que a natureza em sua essência é um ciclo que se equilibra dinamicamente. 

Sabe quando chega determinada época do ano em que as calçadas das casas se enchem de folhas e flores caídas das árvores? É comum vermos as pessoas limpando seus quintais, como se isso fosse lixo. Acontece que, para a natureza, essas folhas e flores caídas têm grande importância no ciclo natural, servindo de proteção ao solo contra as enxurradas e exposição excessiva ao Sol. Além disso, é uma fonte de nutrientes para o solo. Da mesma maneira que a natureza encontra meios para reciclar seus materiais, existe grande chance dos resíduos que produzimos ainda serem úteis para outras pessoas, seja em sua forma original ou transformada. A partir do momento em que nós passamos a interferir no balanço natural, toneladas de lixo são produzidas por ano. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), nosso país produz cerca de 79 milhões de toneladas de lixo anualmente. Já em Macaé, os dados divulgados segundo a Prefeitura são de 240 toneladas de lixo domiciliar recolhidas diariamente e 10 toneladas de lixo hospitalar ao mês. É como se 24 carros populares fossem parar em um depósito de veículos por dia! 

Mas afinal, o lixo é um só? 

Primeiramente, essa quantidade gigantesca de lixo não é produzida somente por nossas casas, esse número retrata também resíduos agrícolas, de construção civil, limpeza urbana, radioativos, industriais e hospitalares, de acordo com o IPEA (Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade). Individualmente falando, nós produzimos cerca de 380 kg de lixo por ano. Parece pouco? Mas temos que considerar que somos 212 milhões de brasileiros produzindo isso, ano a ano. 

Temos grande parte do nosso lixo despejado nos famosos lixões e aterros sanitários, porém o que não se sabe é que 6,3 toneladas de lixo são deixadas para trás nas cidades. Antes que se pense que somente o lixo que não é recolhido é o problema que temos, temos que lembrar que essas super lixeiras a céu aberto, não são a forma mais correta de tratarmos nossos resíduos sólidos. 

A maioria de nós vê o lixo como destino final, como uma fonte esgotada e improdutiva, sem poder ou valor de mercado. Um sapato com o solado descolado, um celular ultrapassado, um computador com a bateria “viciada”… esses são apenas alguns dos inúmeros exemplos de objetos de nosso cotidiano que são substituídos em um período de tempo muito menor do que a sua decomposição. Segundo dados enviados por fabricantes de celulares à IDC, empresa estadunidense de mídia e pesquisa, em média, os consumidores brasileiros costumam trocar de celular a cada um ano e meio ou dois anos. Já o tempo de decomposição de alguns materiais presentes nesses eletrônicos é de aproximadamente 450 anos, como o caso do papel e plásticos. Já o vidro, leva mais de 4.000 anos. Isso sem mencionar que em sua composição há substâncias químicas bioacumulativas, que podem ficar retidas no ambiente durante milhares de anos.

Esse consumo desenfreado, na maioria das vezes, foi pré-programado por indústrias e produtores a fim de garantir lucro próprio. Os produtos são feitos para durar menos ou então são produzidos com configurações que muito em breve serão substituídas por outras mais avançadas. Denominamos essa prática como obsolescência programada. Ou seja, os produtos são programados para durar pouco e você logo terá que comprar um novo.

O sistema capitalista atua diretamente nesse processo a partir de sua lógica individualista e temporária, em que ter e consumir são mais importantes ao Homem do que ser e existir. Já dizia o filósofo Zygmunt Bauman, “vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar”. Associado a isso, temos ainda outras inúmeras influências que impactam no consumo desenfreado, como: datas comemorativas culturais e religiosas e a posição socioeconômica que um indivíduo ocupa (carregado de valores e hábitos de vida), entre outros.

Aprofundando mais sobre esse último ponto, o quesito socioeconômico e seus valores, podemos exemplificar como algumas pessoas veem o lixo e como é a relação delas com isso. O primeiro exemplo é Vik Muniz, homem branco, de classe alta e artista, enxerga no lixo beleza, valor e arte. Ele transforma lixo em fonte de renda, o ressignificando através da arte.    

Seguindo essa mesma lógica de homem branco e classe alta, podemos pensar também em Steve Jobs, o famoso inventor e fundador da Apple, indústria de celulares, computadores e produtora de tecnologia. Esse homem, apesar de preencher os mesmos quesitos que Vik Muniz, contribuiu de forma significativa para a universalização do consumismo, criando produtos tecnológicos de baixo custo de produção e alto valor de mercado e contribuindo cada vez mais com a produção de lixo tecnológico.

Foto de Enok, trabalhador do Aterro de Itaoca, São Gonçalo. Retirada do documentário “Boca de Lixo”.

Do outro lado da moeda, temos o exemplo de Enock, um trabalhador do Aterro de Itaoca, São Gonçalo, negro, pobre e idoso. Ele é apresentado no documentário “Boca de Lixo”, onde Enock diz:  “o lixo faz parte da vida. O final do serviço é o lixo. E é dali que começa…”. Entendimento claro, por parte desse catador, do ciclo natural do lixo e da compreensão de que não existe um “fora” do planeta onde poderíamos deixar essa grande quantidade de lixo produzida.

Fica claro, após a exposição dessas figuras, que a valorização do lixo não tem classe social, não tem raça e nem idade. Vik Muniz e Enock ocupam os diferentes lugares, mas compartilham da consciência ambiental, da humanização e valorização do lixo e seus derivados. 

Chegamos, então, à ideia final de que “isso não é lixo, isso é material reciclável, é dinheiro”, como bem é dito por um catador no filme “Lixo Extraordinário”. O intuito desse texto não é querer fazer com que você mude seu vocabulário, mas sim, sua visão e compreensão do simbolismo e significado do lixo. Tudo provém da natureza e tudo retorna à ela, entretanto não é tão simples quanto parece. Nós, como parte da natureza, também temos uma função nesse ciclo. Já que interferimos tanto produzindo coisas que não pertencem a ele, nosso dever é, de alguma forma, reduzir esse impacto. Devemos repensar nossos hábitos de consumo e nossas práticas no dia a dia. Precisamos mesmo de tudo que compramos? Que tal começar a selecionar o lixo orgânico de casa para adubar as plantas? Ou substituir os copos descartáveis, canudos e sacolas plásticas pelo seu próprio copo ou canudo e por sacolas retornáveis? Atitudes como doar ou customizar roupas antigas, evitar desperdício alimentício, preferir produtos com embalagens retornáveis e a granel e separar os materiais que possam ser reciclados são algumas das inúmeras atitudes que podemos ter para reduzir nosso lixo. 

Foto da obra “Pictures of Garbage: Mother and Children (Suellen)” sendo construída, retirada do documentário “Lixo Extraordinário”.

 E quando pensar que uma latinha não tem importância ou não vai fazer diferença para ser reciclada, lembre-se das sábias palavras de Valter, catador de material reciclável do Jardim Gramacho, “uma latinha tem grande importância, porque 99 não é 100”. 

Caso você se interesse em saber mais sobre o assunto aqui abordado, confira os documentários “Boca de Lixo”, de Eduardo Coutinho, e “Lixo Extraordinário” que registra o trabalho de Vik Muniz no Jardim Gramacho. 

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