Segurança alimentar: os novos frutos de uma agricultura sustentável
Desde janeiro deste ano, o Brasil vem sofrendo cada dia mais com a pandemia da COVID-19, a famosa “gripezinha” que já fez mais de 50 mil vítimas no país. Desde o surgimento dessa doença estão sendo recomendadas algumas medidas para seu rápido efeito de disseminação para minimizar o esgotamento da capacidade de resposta dos serviços de saúde, como o decreto de quarentena, que tem como principal objetivo manter as pessoas em casa. Mas será que só a medida de reclusão é suficiente para nos manter seguros quanto a esse vírus? Tão importante quanto evitar a disseminação do vírus é cuidar da saúde e fortalecer a imunidade. Muitos médicos nutricionistas e outros profissionais da saúde vêm enfatizando a importância de melhorar a imunidade e mudar alguns hábitos nesses tempos de pandemia. Uma boa alimentação, baseada em alimentos diversificados e a prática constante de exercício físico são grandes ferramentas para evitar maiores danos dessa e outras doenças. Entretanto, mais do que se valer de uma alimentação equilibrada é preciso garantir a qualidade do alimento, cultivado de forma saudável, sem venenos e aditivos químicos, o que está longe da realidade do país.
A vasta utilização de agrotóxicos no Brasil
Desde de 2008, com o avanço do agronegócio, o Brasil vem se tornando um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, ficando atrás do Japão, países da União Europeia e Estados Unidos. Segundo dados do Ibama, em 2017 o país utilizou cerca de 540 mil toneladas de pesticidas, o que representa um gasto de aproximadamente US$ 9 bilhões. A agricultura industrial no Brasil é basicamente composta por monoculturas, principalmente de soja, café, eucalipto e cana de açúcar. Essas monoculturas em áreas extensas, garantem um banquete às pragas que logo se tornam resistentes às inovações das variedades melhoradas, se valendo também da baixa diversidade genética necessária a homogeneização da produção. Dessa forma, são altamente vulneráveis às mudanças climáticas, infestações de pragas e doenças, formando um sistema frágil, facilmente perturbado por influências externas, levando ao uso indiscriminado dos chamados “defensores agrícolas” pela indústria do agronegócio. É aí onde o verdadeiro problema começa. Além da extinção de diversas espécies, destruição do solo e interferência em inúmeros serviços ecológicos fundamentais da natureza, esses de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), produtos são responsáveis por cerca de 20 mil mortes por ano, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), tanto por intoxicação quanto por favorecer a ocorrência de inúmeras doenças, principalmente o câncer. Mas por que ainda não abandonamos todo esse sistema? Essa é uma pergunta que muitas pessoas vêm fazendo há tempos, principalmente neste período de pandemia. Precisamos falar sobre soberania alimentar, repensar o nosso modo de vida e a forma como nos relacionamos com a natureza e com o ambiente ao nosso redor.
A solução já existe!
A soberania alimentar nada mais é do que a produção de alimentos visando atender os interesses dos trabalhadores, proporcionando boas condições para as famílias de agricultores, indo em sentido contrário ao interesse do modelo capitalista de produção, ao ocupar terras e manter o agricultor a parte do sistema de produção e consumo. Esta visa também a conservação dos solos e a prática da agricultura sustentável baseada em conhecimentos tradicionais e científicos, considerando perspectivas do campo da ecologia. Neste sistema, ao invés da monocultura, agrotóxicos e produtos químicos, é feito um cultivo diversificado, manejo do solo, controle biológico e uso de biofertilizantes. Os princípios dessa agricultura proporcionam rendimentos razoáveis, altos níveis de resiliência e manutenção das propriedades de funcionamento dos ecossistemas, ao contrário do que ocorre na agricultura industrial voltada para a produtividade. Com isso, as famílias de agricultores que adotam esse sistema têm acesso a benefícios ambientais e econômicos significativos, qualidade de vida, além de ajudarem na alimentação sustentável de grande parte da população urbana.
No atual contexto de isolamento social e restrições de acesso a mercados, essa produção de base familiar de produtos diversificados vem ganhando espaço no abastecimento alimentar das cidades, promovendo um comércio sem atravessadores, e, portanto, menos impessoal e, até mesmo, mais justo. Esse forma de agricultura visa o sustento de forma que o comércio ou mesmo a troca aconteçam com base no excedente de produção, muitas das vezes adotando tons mais solidários e permitindo que inúmeras famílias, que passam por diferentes necessidades, tenham acesso a alimentos de qualidade, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Esse movimento é hoje um dos maiores produtores de orgânicos do Brasil e já doaram mais de 600 toneladas de alimentos para famílias pobres de diferentes regiões do país.
A união faz o alimento
Nos últimos anos cada vez mais pessoas têm buscado uma alimentação saudável, mas sabemos que ela não está facilmente disponível para todos. Com isso, muitas pessoas optaram por começar pequenos cultivos em casa ou até mesmo em locais inutilizados, como ocorre em Macaé, região norte do Rio de Janeiro. Localizada no bairro São José do Barreto, a Horta Comunitária do Barreto, é o resultado de uma importante colaboração entre moradores da comunidade, que juntos iniciaram uma pequena produção de alimentos de forma sustentável, com intuito de melhorar a própria alimentação. Iniciada em 2012 por Jorge Luis de Almeida, conhecido como “Teco”, em um pequeno terreno ao lado da capela do bairro, a Horta Comunitária do Barreto hoje é conhecida por complementar a alimentação de diversas famílias da região, e já se expandiu para outro terreno improdutivo do mesmo bairro. Esse último ponto ainda abre uma outra discussão sobre o movimento de ocupação dos espaços urbanos visando transformá-los em espaços para execução de projetos políticos de importância social, mas isso é tema para uma outra discussão.
Buscando aprofundar um pouco mais sobre as lições dessa agricultura como potencializadora de um engajamento social, que proporciona segurança alimentar, fizemos uma entrevista com Teco, responsável pela ação:
Isabella: Como surgiu a horta comunitária e como tem sido a atuação nesse momento de pandemia?”
Teco:“-Nesse momento de pandemia a horta teve um certo distanciamento do pessoal devido à preocupação com a pandemia, é normal que isso aconteça, mas o pessoal está voltando gradativamente. Não paramos totalmente com a horta, porque com a agricultura não podemos parar né? Nós começamos aqui a horta no intuito de resgatar a Capela São José, fizemos a horta ao lado da capela para dar vida a capela novamente, mas nisso vimos que a horta tinha um grande potencial de ajudar a comunidade.”
Isabella: Como começou a horta no Barramares (extensão da primeira horta em outro terreno), onde vocês mais atuam e onde tem a maior produção?
Teco: “A horta começou aqui porque o terreno da capela estava pequeno, vimos esse terreno aqui que até hoje não sabemos se é área pública ou não, mas era uma área largada onde tinha lixo, entulho e as pessoas no entorno estavam preocupadas com a dengue e chicungunha e resolvemos limpar o terreno, onde vimos o potencial para plantar também. Então nós com um grupo de moradores começamos a plantar aqui e hoje está essa horta onde estamos ajudando um pouco aqui a comunidade. O pouco que ajuda já ajuda muito, ainda mais nesse período de pandemia, temos relatos das pessoas vem aqui e falam que economizaram 20 reais, 30 reais e com isso puderam comprar o pão e o leite para seus filhos e netinhos. Isso aí é o que motiva a gente a continuar, fazendo bem sem olhar a quem, porque as vezes eu não preciso, tenho condições de comprar fora mas eu sei que as pessoas vem pegar porque precisam e porque nosso produto é orgânico, de qualidade, então tudo isso ai vem a agregar.”
Isabella: Como era o engajamento na horta antes da pandemia? Você acha que antes tinham mais voluntários do que agora? Vocês têm um número suficiente de pessoas para fazer a manutenção da horta?
Teco: “Com essa pandemia realmente caiu um pouco, o pessoal realmente afastou um pouco, isso é notório, mas tem muita promessa de o pessoal vir pra cá depois da pandemia, as pessoas estão ansiosas para vir pra cá, tem muita gente nova querendo fazer parte. Nós estamos aguardando o momento para assim que acabar a pandemia esse pessoal que tá se dispondo vir, será de grande valia, acredito que vai vir muito mais gente pra cá, o pessoal vai ter mais consciência. Aqui é uma forma de estar ajudando o meio ambiente, trazendo seu lixo orgânico, preservando a natureza, aqui é um local de vida onde o pessoal nesse momento está muito estressado, daqui a pouco vão descobrir isso aqui e vai estar todo mundo aqui dentro.”
Isabella: A gente vê que mesmo com todo esse processo que estamos vivendo, a horta está cheia de produtos. Tem muita coisa plantada, crescendo. Você acha que mesmo com esse período de reclusão que estamos vivendo, algumas pessoas usaram a horta e a agricultura como válvula de escape para não perder a cabeça na quarentena?
Teco: “Está acontecendo isso sim, tem pessoas vindo para cá pra poder usar como válvula de escape, como terapia. É como você vê, há vida aqui. A Terra é a coisa mais rica que nós temos no planeta, a terra é tudo. Pra Terra nós vamos, da terra nós sobrevivemos, com a terra nos curamos. Então terra é isso aí, faz bem pro ser, faz bem pra mente, faz bem pro corpo, pro seu dia a dia.”
Felipe: Qual a importância da conexão com a terra, da produção do próprio alimento para as crianças de hoje em dia?
Teco: “As crianças quando vem aqui ficam deslumbradas quando veem aquilo que eles têm e comem em casa, cenoura, beterraba, alface… eles vêm que sai da terra, eles veem a riqueza, a grandeza que a terra é e com certeza as crianças que participam de uma horta vão ter um futuro melhor, uma cabeça aberta de ajuda ao próximo, de companheirismo, isso aqui para criança é tudo. Tenho certeza que as crianças que participam da horta têm a mente, a ideia melhor, o coração melhor. Isso aqui faz bem pro corpo e pra alma. Essas crianças que participam da horta com certeza serão adultos melhores lá na frente.”
Isabella: Vocês têm noção de quantas pessoas ou famílias vocês conseguem ajudar doando alimento aqui da horta?
Teco: “Olha, não temos uma exatidão, mas temos uma média de 5 a 10 pessoas por dia… em torno de umas 50 pessoas por semana… em torno de 200 pessoas por mês. A economia é pouca, em torno de dois, três reais, dez reais, 5 reais, onde as pessoas falam que deu pra comprar um pão, uma fralda pro filho, então isso aí nos engrandece, nos satisfaz e enche de orgulho, essa satisfação de estar ajudando o próximo.”
Felipe: Vocês aceitam algum tipo de doação?
Teco: “Aqui a gente pede muito lixo orgânico, semente, ferramentas, temos uma deficiência de ferramentas aqui, se alguém puder estar nos ajudando é de grande valia. Mas a horta aqui é uma horta comunitária onde precisa de tudo. O pessoal vindo aqui, vendo o que precisa, as vezes tem alguma coisa que vai jogar até fora, mas aqui nós reaproveitamos. Não queremos dinheiro, não queremos nada, só queremos só o que venha a agregar aqui na horta. As vezes um material de construção, uma madeira, alguma coisa velha que tenha em casa que vai jogar fora, aqui tem utilidade.”
Felipe: Sobre o lixo orgânico, qual a importância dele pra vocês aqui na horta?
Teco: “O lixo orgânico aqui faz todo o trabalho de melhoria da qualidade da terra, porque ele volta pra terra e a terra filtra ele todinho, devolvendo uma terra de qualidade onde podemos fazer o plantio, melhorando nossos canteiros e com isso o lixo da comunidade deixa de ir pro aterro sanitário e com certeza vai estar agregando e melhorando a qualidade de vida de todos. O pouco de cada um é muito de todos.”
Isabella: Eu e Felipe somos voluntários da horta e uma coisa que vocês fazem desde sempre é incentivar as pessoas a terem pequenos vasos em casa, eu mesmo tenho uma “mini hortinha” em casa onde as mudas foram doadas por vocês. Fale um pouco pra gente sobre a importância do cultivo do próprio alimento, como a boa alimentação cultivada de forma sustentável, sem agrotóxicos, venenos e remédios pode ser um forte aliado das pessoas nesse período de pandemia?
Teco: “Acho que a pessoa tendo uma hortinha em casa, pelo menos um tempero, deixar de comer o caldo Knor processado industrialmente, deixar de comer esses condimentos ai que com certeza vão fazer mal pro seu pâncreas, seu fígado, seus rins, isso ai não tem nem o que falar, o natural é natural. Todos podem ter sua salsinha em casa, seu coentro, seu pé de alfavaca, dentro do seu apartamento você pode ter isso aí. Pegando algumas horas de sol por dia é o suficiente para ter sua horta em casa, seu temperinho e fugir dessa industrialização.
Isabella e Felipe: Nós agradecemos muito por essa entrevista e queremos ouvir suas palavras finais
Teco: “(Emocionado)Eu quero aqui só agradecer aos nossos voluntários, ao pessoal que participa que acredita num mundo melhor, que acredita que nós mexendo com a terra nós estamos em conexão com deus, em conexão com a vida e que o petróleo, a metalúrgica, nada disso ai vale se não tivermos comida, se a gente não plantar e não sair dessa cadeia da industrialização. Vamos plantar, gente! Obrigada a vocês, voluntários, vocês são a razão de tudo. Se não fosse por vocês, voluntários, não teria essa luta.”
Sou moradora do Barreto, conheci a horta há pouco tempo, eu sou fã dessa galera e deste projeto. Meus resíduos orgânicos agora têm um destino adequado. Parabéns pela matéria e pelo importante trabalho!!