Atropeladas pela aventura

O período de pandemia abriu a corrida por refúgios e locais isolados para prática de diversas atividades de lazer e contemplação. E assim expôs de forma inédita áreas silvestres, antes pouco valorizadas, ao alcance de pessoas que pouco entendem de preservação. Outro fenômeno constatado é o aumento da caça, pois o tempo livre dado a população urbana e a menor mobilidade de moradores do entorno de áreas protegidas e, principalmente, dos fiscais ambientais, têm facilitado a prática dessa ilicitude.

Destaca-se aqui, nesse pequeno artigo, o problema da prática de novas modalidades esportivas que se utilizam de veículos tracionados para acesso a locais de grande beleza. Nessas práticas, parte do que é encarado como aventura, inclui trajetos de difícil acesso, passando por leitos e margens embarreiradas das lagoas e rios. No entanto, esse tipo de ação tem caráter nocivo ao ambiente e, portanto, incompatível com as funções e objetivos de alguns tipos de Unidade de Conservação (UC). Para a maioria das UC essas práticas são permitidas apenas em locais pré-definidos. Isso porque, as trilhas formadas pelos pneus dos veículos compactam o solo, o que dificulta a penetração da água e impede o desenvolvimento de plantas e animais que dependem desses habitats para sobrevivência.

Explicando melhor. Assim como nós, outras espécies de animais e plantas respondem às mudanças climáticas alterando parte de seus ritmos biológicos. Muitos mecanismos foram então desenvolvidos, por milhares de gerações, para sobrevivência por períodos de abundância e escassez de chuvas. Dessa forma, muitos seres, animais e vegetais, têm seus ciclos de vida adaptados a viver escondidos em uma fina camada de sedimento úmido do fundo e margens das lagoas, suportando condições que nos parecem inóspitas. Sementes e ovos de algumas espécies de plantas e pequenos invertebrados do grupo dos camarões podem resistir por anos ou até mesmo décadas no leito seco de lagoas, esperando o retorno das chuvas e das cheias para eclodirem e iniciarem um novo ciclo de vida.

Não somente os pesquisadores conhecem as estratégias desses pequenos organismos resistentes, mas também muitas aves já estão adaptadas às estratégias de resistência dos animais das águas rasas ou mesmo no solo umedecido. Algumas aves já adaptaram seus ciclos de migração e percorrem cerca de milhares de quilômetros para se alimentarem dos pequenos organismos que saem dos seus ovos, confiantes de que vão encontrar o combustível necessário para continuar suas longas e exaustivas viagens.

Essas aves cumprem importantes tarefas ecológicas, como, por exemplo, na dispersão e reprodução de algumas espécies de plantas, transportando formas resistentes dessas plantas em sua plumagem e integrando populações que se encontram distantes. A morte dessas formas de resistência representa um risco grave à capacidade dos ambientes recuperarem a sua diversidade depois de alguns tipos de impactos e diminui a possibilidade das aves migratórias encontrarem alimento.

Enfim, só resta destacar que o uso de alguns locais para a prática de esportes com veículo motorizado constitui em crime ambiental, pois interfere na capacidade de sobrevivência de animais e plantas que dependem diretamente e indiretamente de ambientes íntegros. Esse crime compromete o direito das futuras gerações de gozarem de um ambiente tão belo e saudável quanto o que vivemos atualmente.

Rodrigo Lemes

Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia (1999), mestrado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (2002) e doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). É professor do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade (NUPEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 2009. Atua na área de Desenvolvimento Sócioambiental e Ecologia Evolutiva, com experiência em gestão de projetos de caráter interdisciplinar. É representante do NUPEM no Conselho Consultivo do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (CONPARNA).

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