Ainda sobre as queimadas

A Europa, formada por vários países acostumados a lidar com questões de fronteira, estão muito mais aptos a discutir questões ambientais que os EUA. Isso porque colhe hoje os frutos de sua política imperialista com fluxos imigratórios acirrados pelas crises ambientais que se precipitaram em função da exportação de seu modelo de colonização e dilapidação do patrimônio natural. O capitalismo, tanto europeu quanto americano, é um modelo que se baseia no fluxo de capitais, visando sua acumulação e produzindo gradientes, gradientes esses que aceleram os fluxos. Assim cada país tem seu papel nesse jogo e saber jogar é conseguir manter as peças no tabuleiro. A formação de centros e periferia é um processo inerente ao capitalismo que, inevitavelmente, promove contra fluxos migratórios, como resultado de heranças coloniais e mesmo crises humanitárias severas como resultado da distribuição desigual dos impactos ambientais. Esses últimos estão, geralmente, alocados em regiões cuja a educação e participação popular é pouco desenvolvida e a desigualdade dos modelos democráticos permite que as empresas aportem seus piores passivos ambientais.

Assim, a europa parece ter percebido, primeiro e a duras penas, que vivemos em único planeta. Não é possível tomar decisões que não afetem nossa capacidade de vida nessa embarcação comum que atravessa o universo. É sobre isso que estamos falando. Não há mais tempo para fugir dessa discussão. Nós mesmos, em nossas casas, quando fazemos compras no mercado, quando acendemos nossas churrasqueiras no quintal, quando vamos ao trabalho nos nossos veículos, estamos postergando uma discussão emergente que precisa ser enfrentada. Estamos inebriados pelo discurso da ecoeficiencia e de nossa suposta economia verde do agronegócio. Para manter esse modelo cômodo de vida temos, ao longo dos anos, invadido silenciosamente a floresta, sobre a pecha de sermos um país verde e conservacionista. A população vem crescendo e a floresta encolhendo, lentamente de forma quase imperceptível. Pois é meus caros, a conta chegou.

Esse texto nasce da necessidade de aprofundarmos uma questão relacionada as atuais discussões sobre o papel do governo Bolsonaro frente as queimadas e a rápida incineração da boa imagem que o agronegócio brasileiro vem tentando construir, desde a época da crise da vaca louca na Europa. O quadro parece se inclinar para uma discussão “pobre” que visa desqualificar os críticos interlocutores, no caso em questão Alemanha, França e Noruega, numa atuação típica daqueles que não estão acostumados ao debate de ideias. Assim as falas vêm tomando ares de polarização entre o capitalismo europeu e o capitalismo americano, que evitam o debate e entrincheiram a população em discursos supostamente ideológicos. Esse entrincheiramento já foi bem sucedido ao se polarizar capitalismo e comunismo e nos cegar para alternativas sistêmicas.

Essa discussão já deveria ter sido encampada há tempos, e foi preciptada pelo fiasco da gestão ambiental do governo atual e seu discurso de enfrentamento belicista (talvez seja melhor assim!). Está mais que na hora de discutirmos consumo e produção. É isso que as empresas tentam evitar, pois os modelos de consumo e enriquecimento necessita de ampla remodelação da nossa economia que alterará profundamente a geopolítica empresarial e os modelos atuais de acumulação de riqueza. Percebemos enfim que que agro é tec, agro é pop, mas agro não é socioambiental.

Precisamos discutir economias de base local, com a participação democrática e autonomia sobre a formas de consumo das famílias, maior possibilidade de fiscalização e decisão sobre o modo de produção de alimentos, o que demanda uma revisão sobre o uso do espaço. Isso e relativamente difícil pois demanda um processo de decrescimento e desglobalização do consumo de alimentos, dentro de um quadro de profunda dependência tecnológica que nutrimos com relação aos países, tanto capitalistas (EUA e Coreia) como comunistas (China).
Quando falo de revisão sobre o uso do espaço, lê-se uma revisão ou ampla reforma agrária e a produção familiar e a interferência direta do consumidor na forma de produção. Esse discurso faz tremer os liberais afeitos à propriedade privada, porém, antes de causar alarde, é importante deixar claro que não se pretende aqui invocar qualquer fantasma de países colonialistas, ou seja, nenhum fantasma de capitalismo ou comunismo.

Existem modelos silenciosos e silenciados de vida em harmonia com a natureza. Silenciados pela polarização dos discursos e até mesmo invisibilizados e exterminados por atuações epistemicidas de nosso capitalismo ou comunismo selvagem. Muitos movimentos latinos estão tentando recuperar essas formas de pensar e se “desenvolver em sociedade”. Creio que são esses modelos que precisam nos orientar no debate. Não sem ideologia, mas com todas elas!

Rodrigo Lemes

Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia (1999), mestrado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (2002) e doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). É professor do Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade (NUPEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 2009. Atua na área de Desenvolvimento Sócioambiental e Ecologia Evolutiva, com experiência em gestão de projetos de caráter interdisciplinar. É representante do NUPEM no Conselho Consultivo do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (CONPARNA).

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